ensaios
O status de Mulheres Ricas
por Andrea Ormond

Pode parecer óbvio dizermos que em Mulheres Ricas, reality show exibido na Rede Bandeirantes, o que interessa é o status. Cinco mulheres (ricas), que pouco produzem, passam o tempo falando deste seu status. Às vezes, falam também do status das outras, dos familiares e até dos bichos de estimação. Acontece que tudo é circunstância. Tudo é passageiro, momentâneo. Naquele mundo das mulheres ricas não há ética nem história: apenas esgares estéticos e emotivos. O caráter das coisas é ilustrativo, devaneador.

“Você me ama?”, pergunta obsessivamente Narcisa Tamborindeguy, uma das protagonistas, para o namorado, procurando nas palavras um sentido mágico. Como se ao responder “sim”, aquilo despejasse nela o status imediato, que não comporta nenhuma análise de verdade ou de mentira, ou nenhum debate ético sobre o amor. Basta pergunta e resposta, para criar a atmosfera de alegria. Tal rigidez e superficialidade de pensamento beira a psicose. Em uma versão otimista, poderia ser explicada da seguinte forma: sendo ricas, as mulheres passam a não se questionar mais. Deixam a autocrítica de lado; assumem-se, e a seu meio, como modelos estanques, quase arquétipos. Daí só lhes interessa a fruição do momento e do onipresente status. “Falou em depressão, pego o cartão e vou pro shopping, faço compras (...)”. A sentença de Val Marchiori em Buenos Aires, no episódio 4, é indicativa dessa “superação existencial”, cobiçada por inúmeras panteras de melodrama.

Vale a pena discriminarmos as protagonistas e jogá-las no divã. Em tese, seriam cinco: Narcisa Tamborindeguy, Val Marchiori, Brunete Fraccaroli, Débora Rodrigues e Lydia Leão Sayeg. Na verdade, as últimas rendem-se a coadjuvantes de (ops!) luxo. Protagonistas mesmo são Narcisa e Val. Em uma escala menos lisonjeira, Brunete e Lydia. Débora, até o oitavo episódio, não se afirmou como as outras, emitindo um eco mixuruca às aventuras do quarteto. Val e Narcisa representam as grandes vozes, o pseudo poder das divas exibidas, enquanto são observadas, em transe.

A mais “rígida” de status é Val. Tem gostos e opiniões fortes, bem definidos. Paga um cabeleireiro para lhe acompanhar a todo canto. Sua ida ao Rio de Janeiro, no intuito de se esbaldar com Narcisa, provocou uma flatulência cruel de preconceitos. Enquanto Narcisa gritava odes ao “ser carioca”, Val sorria, aparentemente gostando daquele novo status. Porém, defrontada mais tarde, afirmou ter medo do Rio. “Nunca moraria na cidade” e, basicamente, é na bolha dos Jardins, em São Paulo, o único lugar onde sente-se íntegra. Percebam que não existe um espaço mínimo na mente de Val para imaginar-se outra, senão o que já pré concebeu para si. Toda mudança é simulação, teatro.

De Narcisa podemos esperar certa cordialidade autêntica, o que falta a Val. No entanto, a beleza e meiguice brejeira perdem-se na mesma superficialidade intransponível de pensamentos. Narcisa acredita que, com exclamações de entusiasmo, vai dominar e influenciar a vontade da rival paulista. Matando cachorro a grito, a emoção tenta domesticar a razão, o humor busca adocicar a crueldade dos pragmatismos alheios. Tudo sem sucesso, pois fica a impressão de um duelo entre iguais, com sotaques e atmosferas diferentes. Até os homens-troféus apenas mudam de sabor. O de Narcisa, um intelectual que a reafirma com palavras; o de Val, um coroa rico que com o dinheiro lhe sustenta a afirmação. Narcisa não quer ficar velha nunca, isto nenhuma pretende. Mas debocha da senilidade entre o sério e o frágil, na extrema delícia de mudar de assunto qual pluma tresloucada ao vento.

Fora do Zeitgeist, a pequenina Brunete. Sacudindo sua boneca fálica, Brunete despeja no discurso de Val e Narcisa uma tônica amarga. É o aviso, emulando a vodca Orloff: eu sou vocês amanhã. Tem um corpo que não interessa a muitos; logo, projeta-se na boneca. Idealiza conhecer homens de quarenta anos, “descolados”, seja lá o que isso signifique. Um resquício de realidade a paralisa diante do espelho das outras, ainda jovens e apetitosas. Tenta ser amiga fiel, alto astral. Dedica-se a aceitar as quatro – que, por sua vez, encaram tamanha disponibilidade como resultado de carência afetiva. Vejam que Brunete é pós-moderna somente na ligação desmedida ao cachorro, que bebe água em copo de cristal. Não consegue imitar uma perereca durante exercícios físicos, dorme em um passeio de iate e parece saída de uma costela de Bette Davis em What Ever Happened to Baby Jane?. Talvez agarre uma caixa dos curiosos batons “Hello”, que Val pretende lançar no momento de gozo extraterreno: a festa de aniversário, rodeada pelos que a querem e não a querem por perto.

Crescendo no meio de campo, no estilo matrona despachada e esposa sensual, Lydia Leão Sayeg joga no time daqueles dinheiros antigos da sociedade paulistana. Frequenta clubes de tiro ao alvo, acha-se competitiva, palestra sobre o métier de joalheira. Saberia decantar os mimos do circuito Elizabeth Arden, tanto quanto uma normalista ao recitar os afluentes do rio Amazonas. A afirmação e o status de Lydia são, portanto, mais tranquilos. Quem conhece São Paulo nota que ela teria a cara de Higienópolis, não fosse o medo patológico de sequestros, que talvez a impeça de viver no único bairro aristocrático da metrópole onde ricos ainda se ombreiam com plebeus – apesar do bullying ideológico a que vem sendo submetidos nos últimos tempos. Aliás, no impulso de investigações geográficas, resta dizer que o trio Val-Brunete-Lydia parecem improváveis no lar carioca de Narcisa, Copacabana. Outro bairro que democraticamente reduz todos àquilo que somos em última instância: mortais, humanos e pedestres.  

Já Débora serviria de antípoda a Lydia, ou de paralelo a Val. Pobre, posou na Playboy, casou com homem rico e, no fundo, no fundo, não sabe direito o que fazer com o dinheiro. Lydia tem uma casa suntuosa, decorada com bom gosto. A casa de Débora, pintada de azul turquesa, garagem à mostra e piscina ao lado da academia, remete a uma filial interiorana em Alphaville. Sua queda por corridas de caminhão, seu desleixo no modo de vestir, sua prosódia estranha, certamente a tornariam invisível na vida real para as outras quatro. Pois não é só dinheiro que traz status; são as circunstâncias análogas (e previsíveis) ao dinheiro. “Acho que você deveria ficar mais loura”, Val aconselha a Débora, enquanto fazem massagem corporal no spa.

Em cima destas cinco almas criou-se o roteiro: rígido, superficial. Aliás, Mulheres Ricas é trepidante porque as moças quase sempre correspondem aos anseios da produção. Nenhuma se nega a abrir um livro público, em branco, para piadas, sátiras e toda forma de ridicularizações. Quando Narcisa berra no helicóptero e Val quase tem um chilique, imediatamente aquilo é transformado em metáfora do perigo do Rio de Janeiro aos olhos de Val. Uma associação chinfrim, mas a tv é feita desses quadros simplistas, que o bom cinema abominaria. O maître do Gero trazendo comida na casa de Val, a obsessão por (ilusória) exclusividade, seriam outros recursos reducionistas, típicos para gerar leve antipatia. Só que terminam por indicar, na ex-caipiríssima Valdirene, uma autêntica “vilã rica”. Quando a pulsão não é mais ter, e sim assumir o ter enquanto caráter predatório, darwiniano. Quem lembrar de magnatas desapropriando cabanas de pescadores, ou confundindo o Estado com seu patrimônio, ganha uma lata de caviar iraniano da marca Odete Roitman pela perspicácia de (in)justiça social.

A operação plástica da filha de Lydia é outra vinheta que assusta qualquer coraçãozinho empático com a sorte humana. Não pelo capricho e auto comiseração que a move, mas pela enorme insegurança e infantilidade da moça ao se ver em uma situação minimamente imprevisível. Olhamos a pseudo intimidade de mãe e filha, partindo para a clínica de madrugada, e não conseguimos nos desvencilhar do lugar comum sobre ambulâncias que nunca chegam para “mulheres pobres”, crianças morrendo em macas no corredor de hospitais públicos e toda aquela gama de amuletos usados na propagação do ódio entre as classes. Quase damos graças a Deus quando os cachorros roem a roupa e os móveis da família de Lydia. São uma espécie de pets vingadores. E a filha de Lydia, mesmo operada, não deixa de parecer à mãe uma reafirmação da própria coragem. “Sou diferente dela, não sou fraca”, Lydia faz uma autocrítica que é tudo, menos uma autocrítica.

Interagindo com um mundo fantasmagórico, com pessoas que são fundamentalmente “objetos de apoio”, as mulheres ricas abraçam igualmente uma espécie de laudo borderline, no sentido que a psicanálise adaptou para descrever certo tipo de pacientes. Curioso que o enredo goste de mostrar os “objetos de apoio” apenas como teasers dos status e das conveniências. São seres polimorfos, mesquinhos, que respondem e moldam-se de acordo com a emoção das protagonistas. Guilherme Fiúza não deve ter percebido a enrascada em que se meteu quando posou de valete nas loucuras e angústias de Narcisa. No episódio 6, o probo – que não é bobo – chega a aproximar-se da dialética do status, alegando que “se você gosta de alguém, se você está com essa pessoa, você tem que participar das circunstâncias dessa pessoa”. A questão é que ele próprio é retratado como um status, uma circunstância da namorada, figurante em eventos e egotrips variadas.

O cabeleireiro de Val alimentaria páginas e páginas de Melanie Klein. É pago para anular-se e há uma insidiosa perversão, erotismo quase rodrigueano, no fato de trabalhar 24 horas por dia cuidando dos cabelos de uma única mulher. A filha de Débora é espelho esmaecido da mãe, casou inclusive com o cunhado da progenitora. Brunete, além do cachorro e da Barbie, conserva em seus domínios um empregado a quem censura por ter perdido o sapato da boneca. O sapato da Barbie e os cabelos de Val, claro, não existem. São acting-outs, manifestosde porões antigos e lacrados.E se Brunete lembra a irmã menos afortunada de Blanche Hudson, Val Marchiori conserva porte e olhar de tragédia, de subir o bastante para cair muito. Talvez os pets socialistas de Lydia cresçam e a mordam seriamente. Ou talvez seja Val a verdadeira Baby Jane Hudson, cabendo à doce Narcisa o papel de Blanche esturricada ao sol em frente ao Copacabana Palace.

No momento em que escrevo estas observações, não tenho a mínima ideia de como o programa vai acabar. Estando apenas no episódio 8, uma boa certeza é de que, atirando no gosto (da nova classe média brasileira) por um possível glamour e consumismo desenfreado, a franquia de Mulheres Ricas transfigurou-se em campo de férteis e promissores olhares, favorecidos pela generosa estupidez e cinismo das personagens. O escritor Paulo Mendes Campos, no ensaio sobre a experiência com LSD que viveu em 1962, afirmou que a droga não lhe evadiu o senso de realidade, mas aguçou tanto o real que tudo pareceu transcender e dialogar com suas impressões íntimas. É um bom mote ao show da Bandeirantes. Se as imagens de mulheres ricas continuarem apenas status, aparência, circunstância, para nós restará preenchê-las de sentidos. Vida, carne e sangue, enquanto discursam sobre alucinações e perplexidades.

Março de 2012

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