A
Mulher do Meu Amigo, de Cláudio Torres (Brasil, 2008) por
Francis Vogner dos Reis Tudo
na mais perfeita ordem
A primeira coisa que o
advogado Thales (Marcos Palmeira) fala em A Mulher do Meu Amigo é que na
vida é necessário fazer escolhas. Isso porque a trajetória do personagem foi feita
de escolhas oportunistas e ele precisou lidar com elas. Ok, paremos por aí
para uma mediação possível entre o que a ficção nos diz e o que o filme, como
realização, nos revela. Se na vida é preciso fazer escolhas, uma escolha errada
pode ser aliviada ou solucionada por uma outra escolha - o próprio protagonista
ressalta esse dinamismo; já em um filme, as escolhas erradas são incontornáveis,
porque o mundo criado por um filme existe de acordo com a sua duração, e não há
brechas, pois só se tem o que se vê, a irredutível e nada relativa “evidência”
do filme.
A Mulher do Meu Amigo é um notório exemplo disso. O que
temos? O advogado espertinho que enganou velhinhos portugueses adoentados em uma
transação imobiliária e que, além de ser genro de seu patrão (que lhe cobra um
neto), tem como amigos um casal de idiotas. Acontece que, torturado pela consciência
em um fim de semana na casa de campo, ele decide parar de trabalhar e “viver”.
Se relaciona com a mulher do amigo e o amigo é amante antigo de sua esposa. A
partir disso, Cláudio Torres orienta suas escolhas e dá vida ao modo como ele,
diretor, vê essas coisas todas. Se
não fosse só por um desastrado e equivocado enfoque dado ao texto original da
peça de Domingos Oliveira, transformando o que poderia ser uma má comportada comédia
sobre troca de casais em um veículo da má consciência individualista contemporânea,
isso tudo é organizado com aqueles expressivos (e no caso, excessivos) recursos
de cena, desde composições poluídas e simétricas, até profundidades de campo,
plongés, contra-plongés que sugerem uma vertigem formal absolutamente
ausente na energia das cenas. É como se esses recursos de linguagem (que, apesar
de mais coerentes, já levantavam suspeita em Redentor) fossem uma tentativa
do diretor em impor um estilo. Só se esqueceu (ou não sabe) Cláudio Torres que
estilo é uma questão moral: ele existe como a única forma de fazer presente um
mundo, de impor a verdade do diretor (falar outra coisa ou negar isso seria falácia
da brava). A esquiva vem de ele colocar (não problematizar)
no centro de tudo, a moral do personagem – e a moral de Thales, é tão flexível
quando o projeto estético do filme, que aqui é, no máximo, aquela carnavalização
de decoração, falsa alegoria e fantasia sem enredo. Em Redentor, até era
possível achar que o simulado tom operístico e o barroquismo caipira eram uma
tentativa do diretor Cláudio Torres de dar forma a um conto moral (um tanto demagógico
é verdade) sobre a vertigem de um personagem perante uma situação extrema de ressonâncias,
digamos, metafísicas. Agora, em A Mulher de Meu Amigo isso que parecia
interessante no filme anterior do diretor, se mostra só como adereço, além de
servir para – entre outras coisas – confirmar que Redentor era somente
um filme consciente do impacto de suas estratégias, desde a trama que possuía
uma atualidade latente, até a sua atmosfera apocalíptica. Tudo
neste novo filme é muito parecido, mas tem o mérito (ou o azar) de se esquivar
menos. Tudo que era um rascunho de estilo se demonstra agora um limitado repertório
de formas e artifícios. O que parecia ter algum propósito em Redentor aqui
é equívoco explícito, assim como também é mais evidente em A Mulher do Meu
Amigo que a estupidez política não é uma ingenuidade, mas uma postura, uma
compreensão real do funcionamento do mundo, das relações pessoais e dos afetos.
Conciliado, cínico e ranheta. A própria troca de casais e a mudança de profissão
de Thales não muda a configuração do mundo, os personagens simplesmente mudam
de lado, mas continuam promiscuamente dependentes de sua vida pregressa e de suas
relações. Um rearranjo, o advogado que ferrava com os pobres, advoga para os pobres,
é substituído no cargo anterior pelo amigo. Todos moram juntos. O lugar em que
eles estão (das profissões aos casamentos oficializados, agora não mais adultérios)
é só um detalhe, mas que tem a vantagem de aliviar consciências. Ao
terminar a projeção de A Mulher do Meu Amigo, é inevitável que se pense
que Cláudio Torres é um cineasta que tem uma visão particular das coisas. Essa
“visão” do diretor não consiste exatamente em uma visão de cinema, o que automaticamente
quer dizer que não consiste em um olhar sobre o mundo. A visão (não o olhar) que
ele tem é compatível com um certo estado das coisas, em que qualquer sacanagem
é passível de ser escamoteada por mudanças que giram em falso. Essa visão do cineasta
é aquela – tão propalada pela mídia nativa e pelos mais bufões comentaristas políticos
– que pensa que o problema (e a solução) da democracia e toda crise humana e social
se conjuga tão e somente na moral e na conduta individual. Um olhar mais vigilante
sabe que demagogia pouca é bobagem. Dezembro de
2008 editoria@revistacinetica.com.br
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