O
Fantástico Sr. Raposo (Fantastic Mr. Fox), de Wes Anderson (EUA/Reino Unido,
2009) por Paulo Santos Lima
Frontalidade
como escape
O plano frontal é, talvez, a posição
de câmera mais sujeita a garranchos cinematográficos, naquilo que a relação entre
os olhos e a superfície do quadro se assemelha à entrada de um foguete na atmosfera
– e a penetração transversal ao que está dentro do plano tende a resultar em destroços.
M. Night Shyamalan é um nome que vem à mente como grande esteta contemporâneo
que faz maravilhas ao colocar seus personagens olhando de frente para a câmera.
Wes Anderson é outro que vez e outra recorre a tal, na chave da crônica, como
em Os Excêntricos Tenenbaums, que contava com tal procedimento junto
à exposição promovida pela instância narradora que expunha os personagens, quase
como uma lousa. Em O Fantástico Sr. Raposo, Anderson, liberto pela ausência
de humanos em cena, faz do plano frontal uma recorrência quase absoluta, aliada
ao close-up. É
do close que se chega ao rosto e aos olhos, elementos de modulação e expressão
dramáticos desta animação em stop-motion. Contando a história de Raposo
e sua família, às voltas com vizinhos humanos pouco amistosos, Anderson adere
à estrutura fabular dos Tenenbaums e passa longe das implosões rítmicas
e estruturais e inserções cinefílicas de A Vida Marinha com Steve Zissou.
Continua tratando de assuntos ligados à natureza humana (com aspas, neste Sr.
Raposo) e ao avanço processual para a aceitação e entendimento mútuos, para
o grande encontro entre os seres. Raposo, no caso, é um pai de família que trabalha
como colunista de uma publicação e teve, sob o peso da responsabilidade paterna
e marital, que abrir mão de seus instintos animais, ou seja, precisou frear seus
prazeres e vontades para atender a uma demanda “corretiva”. Na prática, significa
que Raposo há anos não invade mais fazendas a fim de destripar galinhas – negando,
assim, sua “raposidade”. Quando, do nada, ele decide debelar o tédio reassumindo
sua natureza, o filme engrena sua história. É sr. Raposo repetindo o que Royal
Tenenbaum (Gene Hackman) jamais deixou de ser em Os Excêntricos Tenenbaums. O
assentamento, que é um fato nos filmes de Wes Anderson, finca estaca aqui. Se
Raposo reencontra o tesão pela vida, sua esposa tratará de freá-lo – frear, mas
não estancar: para lutar contra os fazendeiros humanos enfurecidos, os animais,
em sua coletividade, apresentarão e usarão seus instintos, seu lado animal. Lembra,
sim, Os Excêntricos Tenenbaums, mas, como O Fantástico Sr. Raposo
segue por uma dramaturgia bastante adequada ao infantil, a complexidade cede lugar
às totalidades, às “legendas”, às ilustrações claras, às simplificações. Parece
mais com A Vida Marinha com Steve Zissou na estrutura: professa em favor
do espírito de grupo, como quando a tripulação de Zissou vai resgatar seqüestrados
e, após o ato, restabelece-se um certo entendimento mútuo sobre as intimidades,
forças e papéis do grupo. Se Royal Tenenbaum carrega num gesto um punhado de Raposos
que apareceram ao longo deste novo longa, ou Steve Zissou e seu “filho” Ned Plimpton
nem ao menos têm claramente delineada a relação pai-filho, os papéis e relações
entre os personagens de Sr. Raposo são estritos. Todos estão estilisticamente
dentro da chave da animação, na qual até as ambigüidades são muito bem delineadas
– no caso, somente o rato possui mais camadas, todas muito bem indicadas, e somente
na sua morte haverá dobras e camadas mais difusas, naquela que é mais forte cena
do filme (se O Fantástico Sr. Raposo é um filme infanto-juvenil, aqui está
uma morte mais dramática que a da mãe de Bambi). Nessa
limpidez significativa, acompanhada de inegável simplificação, nada mais correspondente
que ir ao que está mais saliente e à frente da nossa visão: e voltamos, assim,
ao rosto e olhos citados no alto do texto. De fato, o que havia antes na aproximação
à superfície humana, ou seja, de faces, olhares, vozes, e tudo isso bastante coalhado
de camadas, cede lugar a superfícies quase binárias. Ao utilizar o plano frontal
e destiná-lo sobretudo à atenção ao rosto, O Fantástico Sr. Raposo faz
dos globos oculares grandes bases significativas – signos elementares, como um
asterisco, um coração ou a espiral da imagem acima. E mesmo as cores, como o vermelho
na pupila de alguns animais, que nos encaminha para mais de uma leitura: vincular
o rato à vilania ou determinar a altivez do urso técnico do time de beisebol.
Voltando, por exemplo, aos olhos espirais, que transmitem do medo a um estado
de transe indefinível, são nada além de linhas no lugar da bola central dos olhos.
O efeito (ou, melhor dizendo, execução) se dá pela simples fixidez de uma imagem
no plano, que é, também, a própria duração da tomada. É assim, pelo tempo em que
os elementos permanecem estáticos na cena, que o humor ou alguma expressão dramática
relacionada ao personagem drama são realizados. Wes Anderson
trabalha, portanto, completamente vinculado ao estilo do cinema de animação, mantendo
a simplicidade expositiva ao nível da literalidade. Parte de princípios elementares
para, em recursos simples como adotar um ritmo um tanto alternante da montagem,
recorrer a alguns planos frontais de duração um tantinho mais alongada e usar
signos claros e por vezes transitáveis, criar um universo mais multicamadas do
que aparenta a estética. Seria, portanto, um filme sutil nos seus sentidos. Mas
nada tolo. A seqüência final, irônica, mostrando os animais a salvo e fazendo
a festa num supermercado, pegando alimentos enlatados bastante longe do in
natura, já tem em si seu sentido bastante claro – uma ironia ácida à sociedade
de consumo. Mas, além disso, surge, por condição da própria “leitura” de um material
bastante claro na organização de seus elementos, um aniquilamento do estilo fabular.
Se O Fantástico Sr. Raposo usa as tintas e caligrafias de uma fábula parente
dos contos de Esopo e tal, a conclusão no tal supermercado faz ponte com uma situação
bastante “real”, típica, que é a nossa experiência cotidiana de “colhermos” a
comida industrializada em gôndolas de lojas bastante a salvo e longe da natureza.
Para um filme em stop motion, é um final que poderia estar num filme do
Rosselini no pós-guerra. Dezembro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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