Moonrise Kingdom, de Wes Anderson
(EUA, 2012)
por Fábio Andrade
Contrabando
Há uma dimensão francamente política
no cinema de Wes Anderson, que só parece vir às
claras neste Moonrise Kingdom. Política, pois,
em época em que se tornou comum anular o mundo concreto
em abstração, seja pela conceituação
como fim ou pelos delírios da pura fantasia, a manipulação
extrema que Wes Anderson dedica a cada pequeno detalhe de seus
filmes (os melhores e os piores, indistintamente) vai pela via
oposta: em vez de filmar o mundo tal qual uma casa de bonecas,
filmar uma casa de bonecas como se ela fosse o mundo. Essa impressão
já ficava clara nas maquetes gigantes que surgiam a partir
de Os Excêntricos Tenenbaums para, junto com as
caminhadas em slow motion, nunca mais deixar a obra do
diretor. Seja a casa da família Tenenbaum, o navio de Zissou,
o trem que vai a Darjeeling ou a toca de Mr.Fox, os universos
cênicos dos filmes de Anderson são esquadrinhados,
desdobrados feito um livro infantil que encontra efeito tanto
em sua estrutura pronta, quanto no devir de sua própria
montagem – reforçado pela sinfonia decomposta na
trilha-sonora que abre e fecha este novo filme.
Moonrise
Kingdom começa de forma parecida, com um disco na
vitrola, uma casa aberta ao meio e as pessoas, por ali, cada uma
em seu cômodo, fazendo sua parte da coreografia. Até
aí, nada que não soubéssemos antes. Mas Moonrise
Kingdom assume sua dimensão política trazendo
para o primeiro plano uma característica que sempre esteve
no cinema de Wes Anderson: se suas crianças se comportam
como adultos, é porque seus adultos se comportam como crianças.
Aqui, essa proposição é levada adiante, até
torcer o rabo e mudar diametralmente de posição
no espaço. Os jovens Sam (Jared Gilman) e Suzy (Kara Hayward)
não só formam o único casal realmente feliz
do filme; mais ainda, a convicção de que devem ficar
juntos, aconteça o que acontecer, expõe a fragilidade
de todas as relações ao redor. Wes Anderson filma
a casa de bonecas como um mundo, pois por meio disso ele pode
chegar a uma outra constatação fundamental: este
mundo que todos levamos a sério, ele sim é uma casa
de bonecas, um divertimento, uma bobagem que assumimos como dignidade
cotidiana. Isso rebate inevitavelmente nas instituições:
mais ridícula do que a lei, só a maneira como os
adultos – advogados, policiais, assistentes sociais ou,
piada das piadas, chefes dos escoteiros – se comprometem
a segui-la independente de como o mundo se apresenta diante de
seus olhos.
A
inversão que revela a inversão é justamente
o que faz deste Moonrise Kingdom, com toda sua leveza,
uma obra tão mais eloquente do que bastiões das
alegorias juvenis como “Animal Farm”, de George Orwell,
e “The Lord of the Flies”, de William Golding –
títulos que nos recebem à porta quando chegamos
no acampamento de rapazes do filme. Embora a literatura infanto-juvenil
seja referência flagrante no trabalho de Wes Anderson, seu
toque está muito mais para J.D. Salinger do que para Orwell
ou Golding. Por mais que o nome de Salinger tenha sido evocado
de maneira muito justa à época do lançamento
de Os Excêntricos Tenenbaums (tão justa
que até o nome Tenenbaum é tirado de um conto de
Salinger, o primoroso “Down at the Dinghy”), em geral
faltava a percepção de que o interesse compartilhado
entre os dois autores está em descobrir como a ourivessaria
da techné pode revelar a falta de sentido do mundo
por meio de epifanias (imagem-chave da obra de Salinger: uma discussão
interrompida em um engarrafamento por uma fanfarra completa que
desfila, ensurdecedora, pelo meio da cidade), em vez de criar
alegorias que professem ideologias. Wes Anderson tem um prazer
particular em ver as casas de bonecas que ele mesmo constrói
pegando fogo.
Muito
por isso, Moonrise Kingdom torna cristalina uma impressão
que, sabe-se lá como, permanecia oculta: Wes Anderson faz
os filmes que Luc Moullet faria se fosse americano e filmasse
em Hollywood. Tal parentesco fica mais claro aqui em Bob Balaban,
que encarna um narrador extremamente remetente à figura
de Moullet em seus próprios filmes, e que contrabandeia
sua estratégia de deixar o olhar fugir do quadro durante
suas narrações, como se estivesse louco para fugir
dali (e, em outro momento, Anderson praticamente recriará
a dancinha de Minha Primeira Braçada). “Martin
Scorsese define boa parte dos cineastas americanos como contrabandistas”,
dizia Moullet. “Contrabando é fingir que cocaína
é açúcar”. Existe definição
melhor para este Moonrise Kingdom e sua perversa confeitaria,
capaz de fingir que está falando sobre crianças
quando, na verdade, é de nós, do nosso mundo, que
ele está o tempo todo a falar?
Essa clareza se dá por Wes Anderson, sempre um cineasta
do patético, estar aqui particularmente disposto ao ridículo,
seja pelo tom intensificado das gags ou pela maneira
despreocupada com que o filme flerta com o absurdo. O ridículo,
porém, não deixa de ser comovente. É inevitável
se simpatizar com a maneira como o Scout Master Ward (Edward Norton)
se dedica de corpo e alma à inutilidade e incompetência
de seu trabalho. O riso, no cinema de Wes Anderson, é sempre
um riso triste, o riso da consciência de que gostaríamos
de não estar rindo, pois nos reconhecemos ali, e sentimos
também em nossos braços o apertão cada vez
mais forte de nossas amarras sociais. O riso, no cinema de Wes
Anderson, é tudo, menos balsâmico.
Pois, no fundo, Moonrise Kingdom é um filme triste,
quase fatal. As crianças são capturadas pela câmera
no único momento possível de vida, aquele entre
o niilismo da infância e a submissão às convenções
do mundo adulto. Suzy beija Sam pela primeira vez e aquele momento
de entrega é atravessado pela consciência da ereção
do garoto a lhe roçar as pernas. Ele
pede desculpas, ela diz que gosta. “Você pode tocar
o meu peito”, oferece, mas sequer há peito a ser
tocado. O amor, aquele breve clarão que rasga o céu,
é rapidamente curvado às convenções.
Sam e Suzy começam a se comportar como outras pessoas que
se amam se comportam, aprendendo seus passos na triste coreografia
da vida adulta. Ao final do filme, Sam vai embora pela janela
e Suzy já estará reproduzindo o comportamento de
sua mãe infeliz, que deixa o marido em casa enquanto vai
se encontrar com o amante. Moonrise Kingdom é
um filme comovente justamente por sua dedicação
irrestrita e inevitavelmente infrutífera a filmar o reino
que nasce e morre no momento em que a lua começa a subir
e a noite, certa e incontornável, ainda não terminou
de chegar.
Outubro de 2012
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