eletrônica
Telenovela: anotações sobre o estado de um monolito
por Felipe Bragança

Tenho preguiça de que só se fale de telenovelas quando Manoel Carlos entra no ar. A cada nova obra assinada por eles, discussões sobre o lugar da telenovela são retomadas e dividem-se opiniões sobre o que é ou não moralismo nas suas construções frasais. Infelizmente, muito pouco se escreve para além disso. Essa agitação especial se dá claramente pela forma como o autor propõe em seu texto um abandono programático do conceito de trama (aquilo que acontece), comum ao romance do século 19, que deu origem à linhagem melodramática que hoje consumimos como cesta básica no país. É pelo que ele nega que ele se firma como eixo de discussão. Mais próximas de uma crônica da corte ou de uma revista de celebridades retro-alimentada, as telenovelas do bom artífice se encerram em si mesmas justamente por propor a instalação de “um certo modo de vida” dado como natural. Está nessa naturalização declamada, que se aproveita de uma premissa do gênero – “o modo de filmar não é uma questão, a câmera e a proposição estética são anuladas” -, fazendo da estrela absoluta o texto e o close dos atores.

Manoel Carlos faz da sua novela uma obra em discurso indireto livre, em que os personagens declamam sobre a vida como os personagens de um Godard ou de um Dostoievski (para pegar um cineasta e um escritor canonizados, dentre outros motivos, por sua capacidade de construir personagens-enunciados), mas substituindo o sentido de proposição trágica e crítica pelo cinismo da crônica e da observação neutra da vida comum. Por isso, o Leblon idealizado não é uma opção ideológica apenas sobre uma determinada forma de vida: é uma demanda necessária para a anulação dos corpos e da materialidade cotidiana. Manoel Carlos escreve para bocas somente: seus personagens não pisam o chão. É um ventríloquo, portanto – mais do que um dramaturgo.

Essa substituição do sentido corrente de trama pela instalação de um território de comentários morais não pode ser visto, porém, como a única recente ação reativa ao telenovelismo mais tradicional. Tal desvio da ordem folhetinesca clássica tem encontrado também joguetes nas mãos de outros autores, que trilham opções dentro das limitações impostas.

É o caso da camada quase paródica de thriller de suspense que duas telenovelas recentes construíram como estatuto: Celebridade (Gilberto Braga) e Belíssima (Silvio de Abreu). Com diferentes caminhos, ambas as novelas capitanearam seu desenrolar por uma exacerbação do sentido de mistério e intriga, construindo personagens antagonistas que se sobressaem a sua função narrativa e ganham status de verdadeiras atrações. A Laura de Celebridade ou a Bia Falcão de Belíssima, baseados no gestual, nas palavras e na forma de circulação cênica das suas atrizes (Claudia Abreu e Fernanda Montenegro, respectivamente), aparecem como personagens-estados, com vida própria – indo além de um sentido de novelo da trama, e fazendo de suas aparições atrações imediatas que prescindem desta.

Um certo sentido de sublime surge na figura dessas super-vilãs (como também, em menor grau, na personagem encarnada por Renata Sorrah em Senhora do Destino), que deixam de lado a verossimilhança lógica de trama e se tornam objeto de culto, de exploração de uma dramaturgia que fuja da ação e reação necessariamente articulada com o desenrolar moral da telenovela. Esses antagonistas superlativos que enfrentam a trama clássica, não à toa, tem ganhado destaque como verdadeiros protagonistas dessas telenovelas. De alguma forma, a narrativa clássica da felicidade construída, é substituída por um fetiche do terrorismo da lógica da intriga, que são encarnados por essas personagens (em geral, femininas), que não obedecem à cadência mais comum das cenas.

Não é de hoje, vale lembrar, que os núcleos cômicos de telenovelas têm fugido do clichê da trama rocambolesca e do excesso de eventos e peripécias: seguindo uma lógica circense de reiteração de piadas e gags, o principal desvio cômico de Belíssima (na figura do casal Gianechini e Claudia Raia), não se caracterizava por um desenvolvimento de agruras, dificuldades, altos e baixos, nem numa comédia de erros; e sim por uma formulação espiralada em que cada reencontro cômico do casal repetia os mesmos trejeitos, formas e gestos. É cada vez mais comum observar que alguns autores têm construído verdadeiros fronts dentro de suas tramas com estes núcleos cômicos onde o que acontece não é relevante, e sim a forma e o comportamento. É o caso do Foguinho de Lázaro Ramos, em Cobras e Lagartos – mais próximo de um personagem-núcleo de uma sitcom norte-americana do que de um protagonista em ação e desdobramentos.

Nem boa, nem ruim, essa carnavalização da trama ou sua suspensão radical, tem marcado as telenovelas de maior êxito de publico e reverberação cultural. Se a telenovela de intrigas amorosas ainda é cultivada como um pré-escolar em Malhação, sua imagem de monólito estático seguro nos últimos 20 anos é falsa e preguiçosa.

De alguma maneira, esses efeitos reverberam o território do audiovisual brasileiro, cada vez mais, como um lugar de reprodução e proposição comportamental, e não tanto de narrativas de formação identitária (vide o fracasso das últimas telenovelas da colônia italiana de Benedito Ruy Barbosa, ou a pouca repercussão das últimas séries-biografias anuais). Antagonismos de realização pessoal têm sido rarefeitos diante de uma certa homogeneização do real, que é ao mesmo tempo um cultivo do não-embate e uma naturalização da vida como objeto extático sobre o qual se acumulam camadas que não se chocam.

O tempo cronológico dos eventos que se sucedem e se estruturam (e desestruturam), perde espaço para uma simulação cínica ou para a carnavalização cômica da “vida comum”, onde a trama, para se comportar, precisa se vestir de farsa. A expectativa não parece estar mais no embate entre o mal e o bem, no amor possível ou no impossível, mas em ver circular com suas graças o mal e o patético dos personagens, como em um desfile, como em uma performance auto-alimentada em que as peças não estão em crise. Não à toa, são cada vez mais comuns telenovelas em que os conflitos “o Bem contra o Mal”, propostos inicialmente com destaque, são resolvidos em um plano espiritual para-metafísico, propriamente encenado como não-vida ou outra-vida (vide Alma Gêmea, vide o repeteco de A Viagem, ou a tenebrosa América).

É gritante, por exemplo, o fato de que os protagonistas iniciais (onde está a intriga amorosa) em Cobras e Lagartos foram aos poucos sendo colocados de lado, em total segundo plano. Ou, na recente Bang Bang, em que o antagonismo vingativo dos personagens de Bruno Garcia e Mauro Mendonça não foi bem aceito, logo transformado numa amistosa disputa afetiva pela beldade da vez (Fernanda Lima). Mudança essa efetuada, importante lembrar, pela intervenção de Carlos Lombardi, um dos inventores da novela-bloco-carnavalesco, em que as cenas se seguem como esquetes de uma trama superlativa que aponta para todas as direções. E assim, meses de exibição se passam sem que se tenha a sensação de uma trajetória, mas somente de um acúmulo de piadas, gags, atrações.

Digo e repito: esse desamor pela centralidade da intriga é antes de tudo um dado, mais do que um defeito ou uma beleza. Ressoa, sim, a cultura dos reality shows, a descrença em feitos incisivos na política e nas ações pessoais, uma certa apatia pop da imagem-ação que leva o drama ao esvaziamento e uma derrota da imagem-tempo aos parâmetros da não-atividade.

Se as estratégias de encenação e a busca pelo encantamento na contemplação divergente foram cultivadas em cinemas de vanguarda da ultima década, como forma de uma certa insurreição do olhar diante do empobrecimento da fruição, é inegável que há um certo refugo, uma certa secreção da anti-ação ou da imagem-instalação na teledramaturgia brasileira dos últimos anos. A questão é o que se quer instalar. E de que forma essa instalação quer se bastar por si mesma como espelho de um estado sem crise... Como se dá essa ação suspensa em que a imagem-afecção não se desdobra? A história provavelmente nos guarda um refluxo de tramas, intrigas, ações e super-heroismos no cinema e no audiovisual brasileiro, como já ocorre na indústria norte-americana que relança hoje as grifes do cinema de grandes heróis e de feitos notáveis como não se via em tal grau desde os anos 80? Haveria uma fissura criativa entre o acúmulo melodramático-romântico dos anos 70-80 e o doce cinismo naturalista das telenovelas atuais?

O fato é: nosso maior monólito audiovisual, apesar do que podem pensar os estrategistas das redes de TV ou os críticos desinteressados, não está assim tão intocado pelo que o cerca. Sua cartilha já não se basta como espetáculo narrativo e de peripécias. Mocinhos e bandidos já não interessam como engrenagem auto-suficiente – e até os marketeiros de plantão admitem isso. A ferida está aberta, ainda que os números do Ibope demonstrem a segurança de público, que ainda se segura antes de migrar para as telenovelas de outras emissoras ou aos canais a cabo ainda caros e inacessíveis para a maior parte da população. Alguma outra contaminação é possível nessa fraqueza velada? A grife Manoel Carlos não seria apenas o anúncio sutil de um embotamento? Alguma outra rima estaria escondida nessas demandas mal-resolvidas do drama burguês tupiniquim? A seguir, as cenas do próximo capítulo.


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