emulando

A imagem e o Infinito
por Luiz Soares Júnior

Moses und Aron, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
(Áustria/França/Alemanha Ocidental/Itália, 1975)


Ênfase na petrificação do fade in, panorâmicas que incidem sobre um campo aberto, uso constante do contracampo: a imagem em Moisés e Aron é, como manda a lei mosaica, seca, estagnada, rarefeita. Como manda todo Straub/Huillet, ela é vaticinada pela palavra, auratizada por seu sopro. Ela é o equivalente do Deus judaico, o irrepresentável por excelência que subjaz a toda representação. Apesar de raquítica, a imagem, à semelhança de Deus, subsiste (e preexiste) a tudo, inclusive à palavra: a palavra é derivada dela, envolta por ela num casulo.

A palavra canta (diz) a imagem, que é anterior a ela, como a tudo o que podemos representar. Mas se ela é o arauto do que na imagem persiste, a ela deve ser assignada a função modesta de todo arauto: ser um anjo anunciador da mensagem, e não a própria. Daí o caráter simbólico da palavra na cultura judaica, fonte de toda cultura ocidental, aliás. Ela aponta para algo que não está nela, que não coincide com ela, mas que só pode nos ser “apresentado” por meio dela. Ponte, e não porto.

O ponto de vista adotado em Moisés e Aron é geralmente único: nada mais natural, na descrição de um mundo monoteísta. Na segunda cena, temos um plongée sobre os dois sacerdotes, ângulo que vai se repetir em muitas situações ao longo deste inquérito. Não é, porém, apenas o ponto de vista de Deus que se coloca ali, julgando as ações dos homens, mas, fiel à concepção comunitária que subjaz ao monoteísmo judaico, uma espécie de ponto-síntese que reúne na divindade as diversas funções, necessidades e instituições do mundo judaico. Deus é, antes de tudo, o horizonte de sentido de uma cultura, para onde se dirigem seus baluartes e sua hierarquia simbólica.

Sim, em Moisés e Aron o ponto de vista é único, a posição dos atores no plano hierática, mas esta aparente rigidez tem sua situação numa visão mais singularmente dialética do que podemos a princípio perceber. A imagem é o lugar da diversidade dos pontos de vista, das transições, das modificações aportadas pelo tempo e pela sensibilidade; nela, tudo é cambiante. Ora, a questão que se põe em Moisés e Aron (e no cinema dos Straub em geral) é: como dar conta da imagem, de seu status ontológico, como elevá-la em instrumento de conhecimento sem ao mesmo tempo sermos obrigados a negá-la, a imagem que é meio inadequado a qualquer ambição de conhecimento? Móvel, passageira, mutável por excelência, contrária, portanto, à fixação e constância do objeto, critérios necessários ao seu estudo?

A questão que se põe é transcendental, como sempre. De que maneira podemos aceder ao conhecimento a partir (e apesar) da imagem? E sem abrir mão dela, é claro, já que, ao escolher a arte como via privilegiada para tanto, temos de lidar com os limites draconianos da sensibilidade. Questão essencial para ambos os estóicos criadores: Schoenberg e a cultura judaica; os protestantes Straub.

Em Moisés e Aron, assistimos ao momento em que o povo judeu se afirma como um povo. Ou seja: no instante da apresentação do povo, mediada pelos irmãos, ao Deus Javé, o Deus invisível e irrepresentável, ao qual só o Justo, no interior de seu coração, pode ter acesso. Um Deus anti-pagão, anti-visível em essência. No terceiro ato, há a revolta do povo, representado pelo coro, em relação a esta determinação, imposta a eles pelo fundamentalista Moisés e pelo hermeneuta Aron. Uma série de bruscas panorâmicas nos coloca no centro de um processo inquisitorial com muitos litígios envolvidos.

Há, aliás, duas funções distintas nas panorâmicas do filme: a panorâmica lenta sobre a paisagem, que tem o objetivo ontológico de desvelamento; e a que se dá na ação propriamente, com propósitos de estabelecer oposições entre as partes em julgamento. No uso do plano-detalhe, sobretudo, se explicita a função pedagógica de transformação da imagem num meio de conhecimento (e ascese): quando o povo, indignado com o novo Deus “invisível” que eles terão de adorar daí por diante, se revolta contra Moisés, cabe ao intercessor Aron, seu irmão, tornar visíveis, através de milagres, os poderes desta força superior.

Temos, então, contrapostos aos planos gerais, um pontual close na mão leprosa de Moisés. Logo se seguem dois planos gerais da assembléia do povo, exortada pela palavra de Aron a acreditar no que não vê, a atribuir à imagem – a mão doente, visão da decadência – um caráter ilusório. O próximo plano de detalhe nos mostra a mão curada de Moisés. O plano de detalhe é um meio de passagem entre a primeira imagem ilusória, ingenuamente percebida pelo povo como a Verdade Absoluta – a mão leprosa, o jarro de sangue; e a imagem tida como real, desvelada pela palavra de Aron – o plano da mão curada.

A imagem retorna como verdadeira por intercessão do texto, recitado por Aron; manobra alquímica de fecundação do real pelo alegórico, e de subsunção do alegórico à carne do mundo. Se Moisés é o sacerdote rigoroso que habita o invisível, Aron é o portador que materializa o Invisível para o povo, que ainda não se acostumou a encontrá-lo em seu interior. Ele informa o invisível numa presença “cotidiana, captável, visível, eternizada no ouro”. É o mediador entre a idolatria e o conceito.

À oposição entre Moisés (o conceito a serviço do Eterno) e Aron (a imagem que materializa o Invisível e acaba por tomar-lhe o lugar, tornando-se idólatra), os Straub nos apresentam uma síntese, a princípio vista como impossível, mas por isso mesmo sempre bem-vinda, uma idéia reguladora. Uma imagem infectada pelo negativo do conceito; e uma palavra amplificada, arrojada, dinamizada pelo sopro vivificante da imagem. Imagens que exprimem uma idéia – como o ordenou Moisés –, idéia oxigenada pelo vasto e rarefeito campo das imagens, como desejou Aron. Didatismo da imagem, pulsão sensual da idéia.

É sintomático que os Straub tenham escolhido esta ópera para encenar. Ela coloca em cena este face dupla, este jogo movediço que liga a palavra – da qual a imagem straubiana será sempre tributária – à imagem. Ao mesmo tempo em que a palavra é subordinada à imagem – assim como a palavra divina é o símbolo, é a escritura visível e derivada do deus inacessível –, sem a linguagem, não há propriamente imagem a ser designada, visto que a cultura judaica é indissociável do conceito de expressão. O ser só “é” na medida em que é expresso, em que é dito; inclusive o ser divino.

O ser divino, aliás, também se expressa, mas negativamente: o discurso finito do homem só se elabora na retirada do Deus, à medida e na medida em que o divino sai de cena (Deus invisível e irrepresentável). A linguagem humana nasce neste vácuo: ela é o rastro do divino que desaparece. Falar se destina a preencher uma ausência infinita, ausência do Infinito que se esconde. Nada mais lógico, já que, se o Infinito estivesse presente, nada de finito existiria: o Infinito, quando aparece, é geralmente para fulminar o finito, que não resiste à sua força descomunal, como nos relatam tantos episódios bíblicos.

Assim, tanto Deus é a fonte de toda expressão, materializada em linguagem e criaturas, quanto é, por sua vez, negativamente expresso pela linguagem (linguagem como expressão da ausência de Deus, e não da presença). Ora, o propósito didático-pedagógico do cinema dos Straub tem no hieratismo estilizado de Moisés e Aron seu ponto de realização: que outra cultura permite que se experimente esta imbricação entre imagem e linguagem, a possível “redenção” da imagem-tabu pela linguagem do invisível, a imantação do sensível pelo gnosiológico, senão a cultura judaica, cujo mito formativo é encenado aqui?

Além do conhecimento, inserido no cerne da imagem, através do seu cotejo/situação com os textos, o judaísmo legitima um singular materialismo, a pedra de toque para este cinema tão atento às texturas das vozes, à precisão mineral do espaço e à fluência do tempo. Um mundo para o qual a divindade decididamente virou as costas, já que só se permite manter “presente” a partir da reciclável interpretação dos signos de sua ausência – de textos, de corpos, suas conjunturas –, da Cultura enfim. É um mundo no qual os homens têm de aprender a criar e lidar com suas próprias questões, a situá-las no horizonte de acordos estabelecidos em comum. Um Mundo, portanto, para o qual a História, o campo destinado ao semeio do homem, é tudo.

Julho de 2008

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