Moacir Arte Bruta, de Walter Carvalho
(Brasil, 2005)
por Felipe Bragança

Olhar comum sobre o incomum

Não há muito no filme Moacir, Arte Bruta (e isso não é demérito exatamente, é efeito) que se expresse de maneira definitiva, para além da força mesma do grafismo particular dos trabalhos visuais do artista nele retratado. Tipo de obra de autoria difusa, porque por demais focada em um objeto de graça expressiva poderosa.

Dono de um universo pictórico e traço especial, Moacir perambula no filme, indefinido entre o perigo de se tornar uma figura de “arte popular” tipificada, e a possibilidade de conquistar estatuto de personagem, de criatura particular. A opção por reconstruir o perfil e a biografia de Moacir através de depoimentos de vizinhos e familiares, por vezes deixa transparecer as entrelinhas do entorno social e simbólico do personagem, por outras parece apenas querer reiterar a imagem-fetiche de gênio auto-gerido pela ignorância. Um dilema que acaba simplificando nesse ideal a antítese da patologização do desviante, rebaixando o olhar do filme a uma certa graça gratuita do arcaísmo.

Essa confusão entre dar uma individualidade expressiva a seu personagem e/ou tentar encaixá-lo numa certa graça pré-montada de encarnação da tal “arte bruta”, faz com que o filme por vezes dilua algumas de suas boas passagens em truques de edição e fotografia que forçam um clima de mistério desinteressante. Um desejo de mastigar, através de uma trilha sonora impositiva e a inserção proto-poética de imagens picotadas, o universo do personagem em direção a um prazer de exotismo popular-mágico que mais cansa do que transborda o olhar.

Há, sim, visualidade e encantamento verdadeiro nos momentos em que a câmera deixa enxergar as imagens que a cercam. Há, sim, força expressiva na figura corporal do artista, na sua forma de falar, caminhar e encenar sua presença e suas “visões”. Mas há também uma certa burocracia, um certo travamento do filme-perfil na forma como a narrativa final compõe sua figura sem se deixar levar pela geometria de sua rotina. É frágil e sem ritmo, por exemplo, a seqüência em que Siron Franco se encontra com Moacir, em especial pelo constrangimento de se ver o tom professoral e o aval social que essa seqüência parece querer doar ao protagonista. Entre a extrema força de seu personagem e uma observação desacertada entre a busca de atmosfera e a descrição de portfolio digerido, fica um filme que tem como principal efeito trazer à tona uma referência de visualidade, de construção fabular e de talento gráfico especial, no trabalho de Moacyr. Mas, que não tem desdobramento visual e de atmosfera que sustente sua duração para além de seus primeiros 40 ou 50 minutos.

De qualquer maneira, é sintomático e interessante para a reflexão de algo ainda muito mal resolvido na construção dramatúrgica no audiovisual brasileiro: de que forma o olhar estrangeiro pode e deve se fraturar para entrar em contato com universos cuja dinâmica não é aquela em que comungam seus diretores? Como apostar na atmosfera da fabulação sem precisar manter um pé atrás no senso comum do culturalismo popular e do realismo informacional? Como criar interação entre o audiovisual dos grandes centros, e dessa elite cultural estudiosa, e a dinâmica simbólica e visual de outras atmosferas, mais desviantes?

Uma pergunta que, se o filme não responde (e nem sequer tenta, de fato, formular), o olhar mascarado de Moacir, no plano final na bicicleta, nos entrega nas mãos como um problema a pensar.

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