O Mistério do Samba, de Carolina Jabor
e Lula Buarque de Holanda (Brasil, 2008)
por Lucas Keese

O cinema entre o mistério e o registro

Música é arte que por si só não deixa registro: é efêmera, feita de tempo, mera vibração do ar que esfacela-se na memória de seus ouvintes tão logo termina. É claro que dá pra codificar em partituras, dá pra cristalizar o som em alguma fita magnética. No entanto, muitas vezes, o batuque se vai tão misterioso quanto veio, sempre correndo o risco de desaparecer completamente junto com aqueles, os privilegiados, que o viveram. O cinema, ao contrário, é registro por si só. E, em sua história brasileira, olhou com especial atenção para o samba.

Antes, mesmo quando silencioso, já documentava carnavais e, assim que se fez sonoro, não houve ritmo que mais ocupou suas trilhas: das chanchadas carnavalescas, passando por filmes de diretores como Moacyr Fenelon e José Carlos Burle, até o protagonismo quando a voz do morro rasgou a tela do cinema nos primeiros longas de Nelson Pereira dos Santos, ainda na década de 50. O enredo de Rio, Zona Norte, por exemplo, é a própria trajetória de um sambista lutando para gravar seus sambas (cujo autor real era o portelense Zé Keti), que, se no universo da trama tinham destino incerto, representação das contradições sociais em torno dessa cultura, eternizaram-se na película com Grande Otelo e seu antológico sorriso ao ouvir a letra de seu personagem na voz de Ângela Maria. Na história recente, há um mar de documentários sobre sambistas e seu legado. Cito rapidamente alguns: O Catedrático do Samba, Samba Riachão, Paulinho da Viola – Meu Tempo é Hoje, Cartola – Música para os Olhos, Samba à Paulista até que agora nos chega este O Mistério do Samba.

É curioso notar como houve uma especialização, como se dar foco ao samba tivesse virado uma função do documentário. O que está em jogo aqui é a noção de registro e, junto com ela, a noção de cinema. Não por acaso a tendência hegemônica desses documentários recentes é o registro e/ou adorno oficioso do objeto em questão. Em geral, há pouca experimentação na linguagem; do mesmo modo, não é raro encontrarmos comentários que tendem a ignorar suas formas: “impossível fazer um filme ruim sobre tal ou tal músico”. O valor, então, é fundamentado na capacidade de exibição do filme: quanto mais informação, momentos exclusivos, inéditos, depoimentos raros etc, melhor. Há um sucesso a priori que vem do objeto, fazendo que grande parte do trabalho de montagem assuma um papel negativo, no sentido de economia da informação, de organizar tudo o que se dirá e mostrará sobre o assunto, mas com pouca criação de significado em seu processo (e nesse ponto vale sublinhar que Cartola – Música para os Olhos é o que mais se distingue na contramão de seus pares).

O Mistério do Samba oscila entre dois pólos. Um deles aproxima-se dessa tendência recente de abordagem mais oficiosa. No início, por exemplo, há uma sequência de quadros fixos, um ensaio fotográfico do bairro de Oswaldo Cruz cuja função parece ser a de adorno artístico, deixando ver uma certa ânsia de se constituir como um “produto de qualidade” com seu bom acabamento. Do mesmo estilo são as cenas mais produzidas, que alternam entre câmeras fixas filmando uma conversa entremeada por números musicais de Paulinho da Viola e Marisa Monte, e apresentações coletivas registradas por várias câmeras.

No outro pólo estão as imagens que mais se relacionam com o mistério do título, uma busca por algo que se desconhece, sobretudo as filmagens que acompanharam Marisa Monte em sua pesquisa por canções inéditas que corriam o risco de cair no esquecimento. Nessas cenas, de produção modesta, realizadas unicamente com pequenas câmeras de vídeo, o olhar fica livre e torna-se mais criativo. Diferente das outras cenas, espécie de shows intimistas onde o foco de interesse já estava pré-definido (Zeca Pagodinho, Paulinho da Viola, a Velha Guarda da Portela em ação e a onipresente Marisa Monte), o fato de não saber bem o que filmar ajuda a câmera que, em procura atenta, faz ver sua própria inquietação, como num belo plano de uma senhora que surpreende sambando na calçada e acaba ganhando um trepidante zoom. Não se trata de um elogio incondicional ao puro improviso e à indeterminação em contraposição ao trabalho que segue um roteiro já estabelecido de imagens e assuntos. O que se quer ressaltar é que os momentos mais produzidos terminam por engessar suas possibilidades criativas em nome da eficiência de um registro passivo – um “ligar as câmeras e deixar as estrelas brilharem” (e não deixa de ser significativo notar que o site do filme só tem fotos para download destes momentos "montados"). Já se sabe mais ou menos o que vai acontecer, para onde apontar a objetiva etc, o que produz imagens que, apesar de inéditas, soam como repetidas. A capacidade do cinema em registrar a cultura de um tempo está justamente na potência de suas possibilidades formais em multiplicar e estender significados. E, portanto, o cinema ficcional em toda sua criação e encenação é também palco perfeito para documentar a história social (André Bazin, teórico do realismo revelatório e crítico da montagem, era um apólogo da ficção). E mesmo esse produto audiovisual que chamamos de documentário, pode ter suas capacidades de documentar ampliadas se tirado esse mesmo fardo das costas, dando mais vazão às suas possibilidades criativas.

O Mistério do Samba deixa claro que optou por não desenvolver dramaticamente nenhum personagem, o que está em consonância com seu registro mais passivo, pouco narrativo. Algo que a princípio não incomoda, já que muitos depoimentos possuem força incrível isoladamente e possibilitam, como diz Coutinho, que a fala seja vista. Mas há ali uma personagem negligenciada, presa sob uma contradição do filme que deixa ver um certo descaso dramático: Marisa Monte. Sim, o filme não é sobre ela, é sobre a Velha Guarda da Portela e o resgate de canções até então não gravadas. Entretanto, a cantora é de longe a pessoa que mais aparece no filme. Sua função é um tanto indefinida: ela fica a meio caminho entre uma entrevistadora, alguém que tem um envolvimento mais profundo com aquelas pessoas (inclusive por seu projeto pessoal de resgate das canções que originou o CD Tudo Azul e as primeiras imagens do documentário), e uma cantora famosa dando canja. A funcionalidade de Marisa Monte para o documentário acabou sendo mais de produção, já que ela era quem tinha maior contato com a Velha Guarda; e de marketing (seus fãs certamente ajudarão na venda do filme) – mas não narrativamente, como personagem. A proximidade de Marisa Monte com a Portela, relação que já vem de longa data (seu pai foi diretor da escola), pode não ser uma questão para o filme, mas está lá, fazendo dela uma quase-personagem principal que dá depoimentos, conversa, canta com quase todos, faz a unha e não se sabe muito bem porquê. Mas, felizmente, esse é um mistério menor no filme.

Uma das últimas filmagens do documentário foi feita em 2007: a primeira gravação da canção Volta, de Manacea, recém encontrada por Marisa Monte na casa da viúva do compositor. O show filmado na Portelinha, atual sede da Velha Guarda, é a consagração do filme, pois guardou uma memória musical que se perdia, seguindo a tradição de um cinema brasileiro que um dia disse: “Eu sou o samba!”. Contudo, para dizer isso, esse cinema soube reconhecer melhor seu próprio mistério. Mistério que o faz, apesar de registro por si só, ser muito mais do que isso.

Setembro de 2008

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