Minha Irmã (L'enfant d'en Haut), de Ursula Meier
(França/Suíça, 2012)
por Fábio Andrade
Por um fio
O Lar (2008), primeiro longa de Ursula
Meier, era uma estréia no mínimo curiosa: reunindo
ícones do cinema europeu de autor como Isabelle Huppert
e Olivier Gourmet, e duas das mais determinantes colaboradoras
de Claire Denis (a fotógrafa Agnés Godard e a montadora
Nelly Quettier), a diretora se cercava de boas companhias para
desfiar uma versão européia da estilização
quirky de Wes Anderson – sensibilidade que, com
a mudança geográfica, só poderia terminar
como um filme de horror. A combinação de elementos
tão díspares trazia a O Lar um certo frescor,
com suas cores vibrantes e o sol intenso a acumular no asfalto
que perturbava o lar que dava título ao filme.
Minha
Irmã é um tanto mais comum. Agnés Godard
e Nelly Quettier continuam por aqui, mas talvez o traço
mais marcante a permanecer do primeiro filme remeta àquela
inusitada escalação de Olivier Gourmet: o cinema
dos irmãos Dardenne. Deixemos de lado a inflamação
estilística da câmera na nuca; o que busca Ursula
Meier é confrontar a sobrevivência do sujeito no
meio social com a impossibilidade do plano geral, de ver tanto
quanto (ou menos que) o protagonista a quem a câmera acompanha
com um osso entre os dentes e o rabo a balançar. A diretora
se afasta da ironia e da estilização – frutos
mais íntimos da distância – e se cola a Simon
(Kacey Mottet Klein), garoto que se ocupa de pequenos furtos em
uma estação de esqui e comanda todo um comércio
dessas mercadorias para sustentar Louise (Léa Seydoux),
a menina mais velha que dá título ao filme. Minha
Irmã é dependente da vivência e do magnetismo
de Simon, duas características que Kacey Mottet Klein consegue
imprimir com razoável regularidade.
A irrestrição dessa fidelidade do diretor por seu
protagonista tem certa beleza. Mas Minha Irmã
é um filme sobre status quo, sobre a mobilidade
de um garoto entre as partes baixas (e pobres) e altas (riquíssimas
e temporárias) de uma mesma montanha. Essa imobilidade,
essa mímese impressionista, acaba sendo uma forma de manutenção
desse mesmo status quo, mais ainda dentro da idéia
hoje perversa que se tem de um cinema de autor, no qual os sussurros
das impressões (e do primeiríssimo plano) falam
mais alto do que os berros do mundo. É um procedimento
com uma afirmação (metalinguística) clara:
o mundo não é tão importante quanto o olhar
do sujeito sobre esse mesmo mundo. O revés da proximidade
é tirar parte da potência de uma das características
mais marcantes do cinema: a de usar a câmera como coro grego,
como comentarista e júri de personagens e situações
que não estão soltos na cena, mas foram ali colocados
e imortalizados por um olhar, uma outra sensibilidade. Se essa
é uma das possibilidades de emancipação do
cinema de dramaturgia em relação ao teatro –
não somente a montagem, mas o que possibilita
a montagem – há, no automatismo da câmera que
se agarra ao protagonista, uma anulação do ponto
de vista que nos devolve ao teatro – um teatro extremamente
próximo e desfocado, talvez, mas ainda assim isento de
mobilidade, lembrando a máxima godardiana de que
acompanhar com a câmera o movimento dos cavalos é
justamente a maneira de anular seu movimento, de mostrá-los
parados. E, mais grave, a câmera próxima é
também uma forma de isolamento, de congelamento de um personagem
cuja sobrevivência depende da mobilidade. Mais do que ir
e vir, como faz Simon, a proximidade é uma forma de tomar
o poder, mas manter as relações sociais fixas, estanques.
Claire Denis, essa referência óbvia e concreta aos
dois longas de Ursula Meier, é também uma cineasta
da explosão da proximidade. A diferença é
que essa proximidade é frequentemente contrastada a um
fora – dos quais o cinema de gênero talvez seja o
mais potente – que obriga a câmera e as personagens
a se reposicionarem. Minha Irmã não é
como Bom Trabalho ou O Intruso, mas há
momentos em que a possibilidade de afastamento encontra a força
embrionária de Noites Sem Dormir, Chocolate ou
mesmo A Promessa, ainda o melhor filme dos Dardenne.
São momentos em que a diretora sai dos currais do cinema
de autor e retoma as velhas “soluções”
que separavam os grandes artistas dos operários competentes
no velho cinema de Hollywood.
Sempre
que a câmera se permite afastar, olhar para as situações
com alguma distância, ou mesmo se dispersar na paisagem,
reencontramos algo da peculiaridade do olhar que era mais flagrante
em O Lar e que aqui é reservada para breves, mas
importantes, digressões. Esses momentos são geralmente
reservados a interstícios banais, como os travellings que
giram as fachadas dos prédios, mas por vezes tomam a direção
nas curvas mais importantes de dramaturgia. Com esses recuos,
até mesmo a proximidade ganha em expressão. Se a
estrutura de Minha Irmã torce o rabo na grosseria
dos gritos de Simon de que Louise não é apenas sua
irmã – solução tão estabanada
que chega a comover pela honestidade de sua ineficiência
– no momento seguinte um plano de conjunto em leve contra-plongée
ressalta a diferença de altura entre os dois, redimensionando
uma relação que a proximidade da câmera até
então bem escondia.
A expressividade dsse tipo de solução é essencial
pois, assim como acontece com os Dardenne ao menos desde Rosetta,
o desejo de proximidade é combinado à vontade de
contar uma história. Mas essa proximidade demanda uma construção
minuciosa de dramaturgia e credibilidade que Minha Irmã
passa longe de ter. Há uma sensível dificuldade
em cumprir as oscilações que o próprio filme
suscita – perdendo força sempre que vai do francês
para o inglês, seja por tirar os atores de uma delicada
zona de intimidade, seja por depender de performances bem menos
inspiradas, como as de Gillian Anderson e Martin Compston –
e alguns dos momentos de cabal importância para o filme,
como a já mencionada virada que desmonta o título
em português, são apresentados com aleatoriedades
pouco críveis. Quando nenhum recuo é possível,
qualquer fissura na dramaturgia é amplificada. Poucos pactos
são mais frágeis no cinema do que a impressão
de realidade.
Nesse
sentido, Minha Irmã tromba em problema semelhante
ao vivido pelas próprias personagens. Pois tanto Louise,
com seu falso irmão, quanto Simon, com a vida que ele inventa
para a personagem de Gillian Anderson, dependem vitalmente de
uma história bem contada para seguirem em frente com a
dignidade que a verdade não parece lhes permitir. Mas quando
esses spoilers se equilibram em linhas tão frágeis,
o curso da própria vida se encarregará de cortar
os fios, impedindo que o teleférico continue a subir e
a descer. A estação de esqui se esvazia, os atalhos
de sobrevivência seguirão congelados até o
ano seguinte, e Simon, Louise e Ursula Meier precisarão
ser criativos o suficiente para inventarem novas maneiras de manter
esse pacto de ficção tão concreto, no qual
aquelas vidas parcamente se estabilizam. No vai-e-vem incessante
entre a cidade e a montanha – entre o fundo e o topo; entre
a realidade e o desejo – Ursula Meier encontra, nos segundos
finais de seu filme, um lugar de justeza: após passar a
noite sozinho na estação de esqui já abandonada,
Simon toma o teleférico para descer; no meio do trajeto,
cruza com Louise, fazendo o sentido contrário. Naquele
breve encontro de desencontro, de desejo, em que a cabine do teleférico
lentamente se afasta do ponto de vista do filme, Minha Irmã
parece enfim encontrar seu lugar. Naquela rápida suspensão,
algo escapa ao controle do filme, dragado por essa força
autônoma e contrária que suga tudo para as profundidades
da tela. Há, enfim, possibilidade de cinema.
Agosto de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |