ensaios
Dez anos depois
Millennium Mambo
e o futuro do presente
por Fábio Andrade
Não
é preciso levar em conta os plagistas e os diluidores para
perceber que Millennium Mambo é um filme essencial
para se ter uma dimensão mais exata de o que seria esse
tal "cinema contemporâneo". Em um primeiro momento,
deixemos os procedimentos de lado, pois todo o esforço
de percebê-los é atropelado pela beleza estonteante
de todos aqueles rostos e luzes, mas também pela relação,
tão próxima quanto uma segunda pele, que o filme
estabelece entre o espectador e aqueles personagens. Não
importa quantas vezes eu retome Millennium Mambo, mesmo
quando vou até ele munido dos mais frios e científicos
objetivos; poucos planos depois, já estou completamente
envolvido com a história de Vicky (Shu Qi) e Hao Hao (Tuan
Chun-hao), seus sentimentos à flor da pele, sua relação
violenta, imprevisível e tão absolutamente crível.
Para o inferno com a câmera, a movimentação
dos atores, a fotografia!; temos ali uma história de amor
e não há nada mais importante que isso no mundo.
Não, ao menos, enquanto vemos o filme: durante a projeção
de Millennium Mambo, não há dúvidas
de que Vicky é o mundo. Todo o resto importa pouco,
quase nada.
Mas não há cinema sem História, e não
é somente por ser um filme pleno que Millennium Mambo
se torna um filme-chave. É perceptível que
Michelangelo Antonioni, talvez a antena mais sensível de
sua época, criou um problema para o cinema que lhe é
posterior: por que filmar, se a comunicação, a relação
entre duas pessoas, é impossível? Qual sentido o
cinema ainda pode ter diante da parede impenetrável do
outro, a encarnação de todo o mistério da
vida? Não é descabido dizer que, desde Blow
Up ou Profissão: Repórter, o cinema,
com raras exceções, tem lidado com sua própria
impotência de maneira frontal e crucial. E por mais belos
que esses filmes possam ser - pensemos em Wong Kar-wai, Tsai Ming-liang,
Claire Denis e o próprio Hou Hsiao-hsien - há essa
frequente sensação de que os filmes nos jogam em
um beco sem saída. Mais do que enfrentar esse mal do século,
esse cinema contemporâneo (já não mais tão
contemporâneo assim, uma vez que sujeitos como Apichatpong
Weerasethakul, Pedro Costa, Kyioshi Kurosawa e Miguel Gomes nos
oferecem proposições novas e próprias) frequentemente
se limitou a constatar sua existência.
Millennium Mambo não resolve ou sequer enfrenta todas
essas questões, mas é muito provavelmente o filme
definitivo sobre e a partir delas. O que ele faz é capturar
esse sentimento de mundo com uma beleza e precisão ímpares,
e apontar a necessidade de superá-lo: é preciso
tomar uma atitude, sair de Taiwan - de seu mundo asfixiantemente
familiar, por mais encantadoramente destrutivo que ele seja -
e rumar sem medo de encontro ao desconhecido - no caso do filme
e de Hou Hsiao-hsien, em seu filme seguinte, o Japão, lugar
até certo ponto próximo e familiar, mas absolutamente
alienígena em sua língua, hábitos e comportamento
(nas últimas cenas em Hokkaido, Vicky imita o jeito dos
japoneses falar, antecipando uma cena parecida de Café
Lumière).
Millennium
Mambo tem, portanto, uma motivação de dramaturgia
absolutamente clássica: a necessidade da heroína
superar os limites de seu próprio ser. Mas Hou Hsiao-hsien
encara esse motif de maneira, esta sim, intrinsecamente
moderna. Antes de mais nada, por este ser estar em constante modificação.
Vicky narra sua vida de um ponto futuro - mais exatamente, dez
anos depois dos fatos narrados, coincidentemente em 2011 - mas
essa narração é feita em terceira pessoa,
como se a protagonista olhasse para o passado e não mais
se reconhecesse nele. Ela é um outro. Mais do que uma personagem,
Vicky é a encarnação do devir, desse magma
borbulhante e indefinível que está impresso tanto
na decupagem de movimentos de Etienne-Jules Marey (foto) - logo,
no princípio fundador do cinema - quanto na duração
deleuzeana. A idéia de princípio de cinema
é algo que acentua esse sentimento de que Millennium
Mambo é um filme definitivo sobre o primeiro século
do cinema - lembremos, inclusive, que a avó de Yubari,
o garoto de família japonesa, está completando cem
anos de idade, e sua cidade é destacada no filme não
só por um festival anual de cinema, mas por ter uma rua
do cinema, local onde o filme termina. Millennium Mambo
é um filme sobre o paradoxo temporal que o cinema expõe
como seu maior dilema: o presente é tudo que temos; mas
o presente, ora, ele não existe.
As
personagens são filmadas como bolhas flutuantes nesse devir;
bolhas que se esbarram, se chocam, se transformam, mas que permanecem
inabalavelmente separadas, mergulhadas em seu próprio ser:
as drogas, os fones de ouvido, as paredes, as luzes, etc. Diante
dessa impenetrável individualidade, o que o cinema pode
fazer é promover proximidade, fazendo panorâmicas
que conectam as personagens e usando a tele-objetiva para aproximar
os corpos, para obrigá-los a conviver, mas ao mesmo tempo
para dissolvê-los no espaço, separados pelo desfoque
que evanesce como as velas, a fumaça dos cigarros, e as
moedas que somem e reaparecem no truque de ilusionismo que marca
o segundo plano do filme. Essa relação entre proximidade
e distância, essa sensação de que cada personagem
em tela é igualmente nosso duplo e uma esfinge, já
está anunciada no já antológico prólogo
do filme (foto): a câmera capta Vicky na efemeridade de
uma passarela, transitando no breve ínterim entre dois
pontos que desconhecemos, em um flerte intermitente com a câmera
e a platéia, seduzindo nosso olhar sem nunca nos mirar
diretamente nos olhospara, no momento seguinte, virar o rosto,
negando a frontalidade, mantendo-se enigmática, indecifrável.
As personagens de Millennium Mambo deleitam-se em sua
própria subjetividade, no gozo constante de um presente
irrepetível e inapreensível a elas mesmas.
Essa relação com as personagens motiva, de certa
forma, a própria estrutura narrativa do filme. Hou Hsiao-hsien
incorpora uma incerteza de registro latente dos cinemas modernos,
mas até mesmo essa incerteza é representada de maneira
incerta. Se em Hiroshima, Mon Amour, de Alain Resnais,
ou A História de Marie e Julien, de Jacques Rivette,
as personagens são uma mistura de sua existência
concreta com seus sonhos, desejos e projeções, é
preciso que essa coexistência - ou seja, que a separação
e a posterior mesclagem desses registros - fique clara. Em Millennium
Mambo, tal distinção já não é
mais possível: nunca saberemos se Vicky foi de fato a Hokkaido
ou se aquilo é sonho ou imaginação, pois
as fronteiras entre esses registros de existência se tornaram
absolutamente indiscerníveis. Vicky é tudo aquilo
que ela experimentou, e o filme nos apresenta essa experiência
seguindo sua recomposição pela narração
da própria personagem; o filme é uma coleção
de tudo aquilo que a constitui.
Também por isso, a mise en scène é
marcada por uma recusa quase sistemática (mas apenas quase,
pois Hou Hsiao-hsien está disposto a quebrá-la quando
isso lhe parece necessária) de começar as cenas
já centralizando o seu núcleo narrativo - em geral,
a protagonista. Desde o primeiro plano, a câmera de Hou
Hsiao-hsien parece sempre obrigada a procurar as personagens no
espaço, a vasculhar cada cômodo até encontrar
algo ali que prenda seu olhar, em um magnetismo que, uma vez estabelecido,
se torna inquebrantável. Em um plano marcante, vemos Vicky
caída ao chão em frente a porta de Jack (Jack Kao),
pela imagem de uma câmera de segurança; com uma panorâmica,
Hou Hsiao-hsien sairá do monitor para o mundo real, da
mediação para o confronto direto, do preto e branco
para as cores. É como se, mesmo na observação
direta das personagens, o filme precise superar uma primeira mediação,
um primeiro filtro, uma primeira pele que o separa daquilo que
ele filma. Se, por um lado, isso acentua a sensação
de que há um recorte deliberado e até certo ponto
aleatório daquele universo - um filme que poderia ser sobre
qualquer outra pessoa, como naquele também antológico
plano de Café Lumière em que a câmera
perde de vista a protagonista durante uma panorâmica (fotos)
- por outro, cria o suspense constante de que estamos vendo aqueles
rostos sempre pela última vez.
Aí
parece estar, de fato, o coração do filme: todo contato
entre duas subjetividades, mesmo o mais íntimo, é
breve, parcial e fugidio. Em sua narração final, Vicky
- na concretude de seus sonhos que é Hokkaido - lembra-se
de uma vez em que, enquanto fazia amor com Hao Hao, ela foi acometida
pela sensação de que ele poderia derreter a qualquer
minuto, como um boneco de neve sob os primeiros raios de sol. "Foi
triste fazer amor naquele dia", ela diz. Millennium Mambo
é muito sobre essa sensação ambígua
do contato com o outro, em sua trágica e fulgurosa brevidade,
mesmo que esse outro seja nós mesmos, em nosso passado ou
futuro. Toda relação é triste e amorosa. Toda
impressão é como um rosto marcado na neve, fadado
a ser recoberta e reesculpida pelas camadas do tempo. E como o presente
é incapturável, e a consciência de sua existência
já o transforma automaticamente em passado, a angústia
que marca essa orfandade de si mesmo não é somente
um mal do século; é aquilo que costumamos chamar de
existência.
Junho de 2011
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