ensaios

Do instantâneo à efígie
por Luiz Soares Júnior

Em sua primeira meia hora, Milk é um catálogo de instantâneos. Gus Van Sant filma instantâneos, os éclairs do acaso e do efêmero, mas precisados num espaço-tempo acessível, destilados: instantâneos. Fotos da cidade, de um casal que acabou de se conhecer – já se “reconhece” no mundo, já se projeta no mundo e, ao mesmo tempo, imprime o mundo em seus mínimos gestos, marcos indicadores de uma progressão ambidestra, integração funcional à cidade e dissipação erótica, la part maudite: toda cena de Milk é um retrato de família e um mapa sentimental do viver e do morrer em São Francisco. Mas o filme irá descrever a transformação de instantâneos em efígies. O instantâneo é um flash roubado à experiência, a efígie é sua cristalização numa imagem retropojetada; no limiar entre estes dois princípios, termina o homem e começa o modelo, o paradigma. Falei acima em descrição; acrescento igualmente “inscrição”, pois Milk, assim como Zodíaco, nos brinda com uma série de planos-palimpsesto, planos onde a experiência se sedimenta em caracteres-mortuários a serem registrados, mas jamais ativamente retransmitidos/mobilizados: plano-túmulo (Daney). Assim, no Zodíaco, as pistas, os mapas que são as escalas do circuito de repetição e desgaste entrópico, da vida e da investigação como impasse fantasmagórico; em Milk, imagens de arquivo pré-Stonewall, documentos que encapsulam a presença do personagem sob os tentaculares standards das táticas de biografia.

Milk é uma trajetória no espaço – de Nova York e San Francisco, do ghetto ao palanque-, mas também uma sincopada e sincrética (é um filme que apresenta uma espantosa diversidade de cenários e encenações rituais) digressão no tempo: da educação  sentimental que é experienciar fenomenologicamente um lugar através do olhar do amante apaixonado ao melodrama novelesco da projeção pública, à construção de uma imagem pública, e se possível em alto-relevo: mídias, happenings, performances, uma última performance, que emula a de Bidu Saião no papel da Tosca. Uma efígie. O destino do instantâneo – kodak, câmera digital, impressão digital, gravador de fita, conversa ao pé do ouvido – é tornar-se uma efígie, uma imagem saturada e espetacular da persona, imagem mil vezes refletida, mediada, turva e escrava de si mesma, compósita, gregária, esquizóide, sem anima, sem mim. Figuras de star: Cobain, Milk, os heróis trágicos do massacre de Colombine. Figuras: inscrições de inscrições, rasos, cromos, reservatórios de projeções. O star é um fantasma, e ritualiza a própria alienação, todo show ou palanque é uma encenação de sua morte, seu destino: tornar-se uma imagem idólatra de si (cunhar uma efígie de si?).

Em Paranoid Park, filme anterior de Van Sant, o personagem esboçado no início do filme sofria uma inevitável estilhaçamento, a ponto de se transformar num mero eixo em torno do qual a percepção do crime ia embaralhando as dimensões da durée – o corpo do rapaz se torna o palco ou rastreador de um fogo cruzado de impressões, de fusões e condensações, não apenas entre os eventos, mas entre os espaços também (como na cena do banheiro), os recintos onde os eventos deixaram os rastros do trauma ou epifania. Em Milk, temos a trajetória contrária: como o casual e o efemérico do instantâneo se cristaliza em um personagem, como uma narrativa se forja, como um destino se representa. Daí a importância da cidade, daí o destaque dado ao documento: esses espaços públicos escalonam o trânsito do instantâneo à efígie, ou do retrato de família para a pose oficial. São lugares de passagem, lugares onde se processam ritos iniciatórios, narcisistas também. Ali, um grupo se reconhece e se aquiesce, limiar onde se abandona a domesticidade afetiva em nome da “tribo”, das tribos, perambulações e desterritorializações. Aqui, o contrato social se registra nos corpos, nas grifes, nas coreografias transitivas do grupo, pois o espaço suntuoso (o mundo defendido por Dan White) onde este se celebrava – mansões burguesas, bordéis, Parlamento – já foi desalojado e hipotecado.

Gruppi di famiglie in un esterno: os skatistas de Paranoid Park, os músicos zuretas de Last Days (foto), ou a versão camerística e paranóica do contrato social no pacto amoroso dos assassinos de Elefante, que tentam reproduzir uma filiação societária cujo acesso lhes é interdito no ato “efígico” de um beijo, um selo que os demarca definitivamente do mundo e, em um mesmo movimento, assinala sua dolorosa necessidade de integração. Os companheiros e amantes de Milk também são presas e predadores urbanos, conhecem bem este labirinto, saberão guiá-lo nesta prova. Ora, mas esta contenda – das regras secretas e intersticiais dos pactos domésticos à arena  da codificação panóptica, paranóica e ritual, na rua – não constituirá a demarcação de uma trajetória de luto? De fixação da durée, de estabilização e desidratação da vida, ou de sua sujeição a processos e princípios que lhe são estranhos, que a visam como uma obra acabada e juramentada – a eleição, o movimento gay – e não como um vir-a-ser em questão e em trabalho, em progresso e processo? Instantâneo versus efígie, ainda e sempre.

Tornar-se personagem – tornar-se Cobain em Last days, Milk ou mártir, como em Elefante -, tornar-se uma figura pública equivale à aquiescência a um pacto faustiano, e Milk parece ser o único personagem dentre estes últimos de Van Sant que parece ter consciência disso, talvez por não ser mais um adolescente: perdemos nossa alma, nossa aura, a “memória que só pertence a mim e ninguém tasca”, nosso valor de uso. O único personagem adolescente de Milk, aliás, é o Dan White de Brolin (amaneirado como um bibelô fascista, desintegrável a cada tréplica do Para-Si mefistofélico do rival). Todo processo de socialização equivale à construção de uma imagem destacada de nós, que muitas vezes se volta contra nós (Last Days), ou permanece no limbo de uma consciência reificada, institucional, cujas armas são reversíveis, os métodos ambíguos e escorregadios: a democracia americana em Milk, ou a identificação dos assassinos de Elefante com Hitler, visto numa parada pela TV. O plano ilustrativo desta dissociação entre experiência e imagem pública, aliás, já nos foi dado por Van Sant, no final de Last Days, quando o espírito de Kurt Cobain – do “vero” Cobain?, não ousaria reivindicar um tal nível de platonismo para Van Sant, em todo caso – finalmente se destaca da efígie idólatra.

Em Milk, esta separação não “aparece” numa imagem ou numa seqüência específica de imagens: ela é o próprio filme, a versão “operacional” do que nos outros se apresentava de forma digressiva, mais pontualmente “warholiana” e serialista. Voici le temps des assassins: Milk é mais um monumento funerário de Gus Van Sant – ele que vem se especializando em erguer Resquiecats in Paces para o nosso tempo. Massacres com intróito de “Ao luar”, juventude zumbi, personagens no grau zero da entropia, imagens que parecem flutuar, pois ainda não encontraram, e talvez nunca encontrarão, um corpo para investir, um mundo para assombrar. É redundante dizer que este mundo está morto, seus restos mortais jazem nos shoppings, mas não sepultado?

Paisagem deserta ou arruinada – Gerry (foto), a mansão de brinquedos caquéticos de Last Days -, ritmo cataléptico, panorâmicas circulares que enfeixam a inanidade, ou encerram os personagens nesta (há também uma bela pan dessas em Milk, quando do encontro dos militantes perto do final, creio, quando as cartas já estão todas dadas e já não há nada o que fazer, a não ser flertar com o mortiço contracampo no intervalo entre dois slogans); fora de campo ou quadro, extravio e elipses: morre-se por inanição, míope, baixa, surdamente, jamais overdose estereofônica. Van Sant reinventa o dionisíaco viciado em haxixe, essa figura que não estava na moda desde Baudelaire e que representa a quintessência da consumição pelo menor esforço, do apodrecimento lento, gradual, diáfano e modorrento, sob a clarabóia: a estesia do Lexotan. O fantasma não se funde definitivamente à luz sem deixar pegadas, porém. Em Milk, as pegadas tem um emblema: San Francisco, 1972.

Antes da pá de cal final, um intermezzo elegíaco: a cena seguinte ao assassinato do personagem nos mostra um último instantâneo, Milk e o primeiro namorado na cama, comemorando o aniversário. É uma pena que o filme não se encerre aí, que a última cena seja de um didatismo-diletantismo constrangedor, mas quand même: vemos o equivalente à dissociação de corpo e alma sofrida por Cobain em Last Days. Milk para Milk: solitário em seu quarto, dita uma última memorabilia (literalmente memorabilia, pois conecta uma vivência a um evento histórico), a mensagem especular que destina a vida à obra - Para quando eu não estiver mais aqui... - e consagra a obra como o túmulo da experiência, comunitária, amorosa ou política.

Julho de 2009

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