Miami Vice, de Michael Mann (EUA,
2006)
por Cléber Eduardo
Fluxos de imagens
Na seqüência-climax de Miami Vice, durante
um tiroteio no qual uma informação sobre Sonny (Colin Farrell)
é “visualizada” por Isabelle (Gong Li), ela pergunta para ele
às lágrimas: “Quem é você?”. Não se trata de uma pergunta qualquer,
mas de um dos sustentáculos do filme. Sonny e Isabelle são parceiros
de um cartel globalizado que trafica todo tipo de produto para
várias partes do mundo. Ela é amante de Montoya, o chefão da gangue
internacional, representado como ícone do eixo do mal. Ele está
infiltrado na organização para colocar todos no xadrez. A relação
entre os dois é proporcionada, justamente, pela identidade falsa
de Sonny. Mas também é essa necessidade do disfarce que inviabiliza
um elo afetivo entre eles. Quando vê de que lado ele joga, Isabelle
pergunta, não sem desespero e desorientação: “Quem é você?”. Estamos
em uma crise do olhar (o dela sobre ele), alimentada por uma manipulação
de identidade (a dele para ela). Isabelle não sabe mais quem é
o homem com quem está clandestinamente envolvida. Ele é um camaleão.
A imagem a engana.
Estamos em um narrativa resolvida na superfície,
na notável geometria dos olhares, na dança dos corpos, no fluxo
das imagens encadeadas, nas experiências dos personagens, nas
atmosferas de uma contemporânea poesia – artificial, mas não sem
verdade nesses artifícios. Há uma espécie de libido estética nas
imagens, sempre com encanto pelas formas, pelas texturas do digital,
pelas cenas noturnas, pela atitude da câmera e pelo balé dos cortes.
Não importa a trama, mas as atmosferas. Não importam tanto os
diálogos, como as músicas – cujo volume nunca supera o do som
ambiente. Mais que significados, produzidos pela soma das situações,
importa o ritmo, calcado no movimento permanente, seja entre os
planos ou dos corpos no quadro. Na seqüência do tiroteio, em vez
de proezas de um espetáculo mórbido e violento, valoriza-se a
tensão, os olhares entre os antagonistas. E um desses olhares
é o de Isabelle, que, ao ver a atitude de Sonny, reveladora de
sua atividade de agente policial, questiona sobre a identidade
dele. Dentro da prosa cinematográfica, Michael Mann é um poeta
(do som e da imagem).
Apesar do título homônimo da série de TV, da qual
Mann foi figura-chave, Miami Vice é uma love story,
com um pano de fundo criminal e investigativo. Nem Miami, a cidade,
é uma questão: ela só aparece em noturnas. O caminho do filme
passa por outros cantos, de Cuba ao Paraguai, do Haiti à Colômbia,
sempre em trânsito constante. Nesse universo latino móvel, Gong
Li é a figura chave, com corpo e coração desejados por três homens,
todos querendo ancorá-la – Sonny entre eles. Para nos mostrar
como os olhares de cada um voltam-se para ela, mais que para os
negócios, Mann constrói duas situações inteiramente na imagem.
Primeiro mostra as lágrimas doloridas de um dos gerentes do cartel
ao ver, por uma câmera de segurança, a dança lânguida entre Isabelle
e Sonny na pista de uma boate. Essa imagem é reproduzida, depois,
em um notebook, em câmera lenta, e assistida pelo chefão
Montoya – não vemos a reação dele, a câmera fica em sua nuca.
A não-imagem, porém, acentua a gravidade dramática. Todos querem
Isabelle – e as escolhas de ângulos e de luz para filmar Gong
Li, sem dúvida, expressam o desejo do próprio diretor por sua
personagem (não necessariamente pela atriz).
Longe de ser um filme de ação, não necessariamente
um thriller investigativo, menos ainda uma aventura com duplas
de policiais (na linha Máquina Mortífera), Miami Vice
afirma-se como filme sensual (de uma sensualidade latina), de
sedução, entrega, construção de laços efêmeros entre homem e mulher,
em um solo minado para esse tipo de romantismo. Os cruzamentos
de olhares, no mesmo plano ou em planos diferentes, entre Sonny
e Isabelle, sem exagero, são deleite estético, quase uma invasão
da intimidade sem palavras entre eles. Michael Mann parece estar
interessado, acima de tudo, em construir um clima cinematográfico
para os dois, com todo seu desejo pelo cinema. Nem adianta levar
a série em conta, como se fosse o filme uma franquia conceitual,
porque tudo é pretexto para Mann, em última instância, elaborar
imagens em fluxos, de modo a tecer um ambiente diegético de um
dolorido lirismo. Obra de um cineasta em sentido amplo, não de
um diretor com roteiro na mão.
editoria@revistacinetica.com.br
|