Meu Nome não é Johnny, de Mauro Lima (Brasil, 2007)
por Paulo Santos Lima

A moralização em estética amoral

Muito tem se falado sobre Meu Nome não é Johnny, mas pouco sobre Meu Nome não é Johnny. Muito sobre o que o filme está contando, sobre o que ele representa como objeto, e quase nada sobre como é o filme, sobre o objeto em si. Isso, na prática, significa nada além da “representatividade” do longa, pois ele ecoa algo que vem sendo bastante discutido na imprensa (o tráfico de drogas e o envolvimento da classe média no dito grande problema nacional chamado tráfico de drogas). Nesse quesito, Meu Nome não é Johnny é mero estandarte de uma causa, um “saiba mais” sobre o envolvimento da elite no tráfico, uma “prestação de serviço” (termo este que virá abaixo, na análise sobre o filme propriamente dito). Mais relevante é o papel que este filme de Mauro Lima cumpre dentro da nossa tradição de cinema, e o quanto diferenciado ele é.

O tema em si (um playboy que vira traficante) nem é tão inédito, e a sua singularidade é numérica. Explicando melhor: é como se em vez de se fazer um filme ambientado nos barracos de uma favela carioca, rodassem-no em palafitas no Amazonas, ou fizessem um Ó Paí, Ó ambientado no ABC ao som do rap paulista. Mudam-se alguns dados, mas não a relação entre esses dados. Se é fato que Meu Nome Não É Johnny diferencia-se um pouco da produção contemporânea brasileira, que ainda se volta para o pobre (ora vítima, ora ameaça e sempre efeito do meio), ao ir de encontro a uma classe média, deixando por 2/3 do filme as motivações do protagonista sem vínculo sociológico, isso desmorona no terço final. No todo, o longa não resulta além de uma variante de outras incursões narrativas mais “pop” (O Homem do Ano e Odiquê,  por exemplo).

Se Cidade de Deus tinha como curiosidade (não necessariamente virtude, algo que dependeria único e exclusivamente da direção) o viés do filme de gênero norte-americano, viabilizado por toda uma estrutura dramatúrgica, Meu Nome Não É Johnny não possui uma particularidade, nada que o diferencie, que faça uma diferença, como fizeram o longa de Meirelles ou Tropa de Elite (que aparenta um filme B, de direita, em estética e enunciado esquálidos). O fato de muitos colocarem a fita de Mauro Lima como um avanço na discussão apresentada no filme de José Padilha, só ressalta que a maior parte das discussões paira, sobretudo, no enredo.

Diante disso, mais interessante é ver que o filme dialoga com Alpha Dog, de Nick Cassavetes, pelo menos pelas evidências que surgem na tela – nada além ou anterior a isso.Alpha Dog mostrava traficantes classe média baladeiros, envolvidos em seqüestros e assassinatos, tudo meio sem querer, por boçalidade mesmo, e tudo isso trespassando outras questões (como a relação pai e filho, a perdição de uma geração sem monitoramento paterno e político e, o melhor do filme, a amizade entre seqüestrador e seqüestrado – tudo muito raso e filmado com acelerações, slow motion, seqüências musicais, cortes secos). Tudo muito Sundance Film Festival. Nick, filho de John Cassavetes, pisa um pouco em terreno melhor explorado por Larry Clark, mas prefere o action movie e a estilização arregalada.

A história, baseada em fatos reais (esses “fatos reais” contribuem para imantar o filme nos valores e assuntos acima apresentados), de João Guilherme Estrella é contada numa gramática avizinhada à do filme de Nick, ou seja: bem contemporânea, com câmera móvel e instável que, por exemplo, faz ela própria a decupagem em cenas de diálogo, omitindo-se os cortes do campo-contracampo; um uso de distorções na trilha incidental; slow motions; acompanhamento musical-pop; montagem agitada que não alonga os planos e nem estende as seqüências; tempo narrativo não-linear mas extremamente retilíneo no looping que faz.

Essa gramática fala sobre muita coisa. O filme começa nos anos 90, com a mãe de João Estrella sabendo da prisão do seu filho e indo atrás de informações. Um flashback voltará à infância do rapaz, com o pai e mãe, os colegas, tudo isso num ambiente classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 70. Está claro que Mauro Lima quer dar um valor àquilo que poderia bem ser uma experiência do personagem ao nível da experiência em si. Uma frase, que é epígrafe do longa, é citação à Marguerite Yourcenar, “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos”. Frase perigosa, como veremos daqui a pouco. Há, também, informações acerca do pai, homem devastado por doença e pela solidão, cuja fraqueza de têmpera afrouxou os arreios que permitiram João engrenar para o “carpe diem” das baladas, bebedeiras, mulherada e consumo expressivo de drogas. Tudo isso, literalmente, trazido à casa, ou seja, ao cotidiano, o que aliás resulta numa cena bastante simplória – a câmera de fora avistando a pequena mansão da família, olhando o quarto do pai no andar de cima e a festinha porra-louca no piso inferior. É nesse personagem do pai e sua relação com o amado filho que transparece o apelo dramático deste filme cheio de piadas e correrias, o que virá no tal terço final.

A velocidade com que as coisas acontecem na vida do João Estrella dos anos 80 deixa as coisas ao nível da experiência isolada, ou menos que isso, pois a aceleração vaporiza a retenção. Vida esta, aliás, que remete à tradição norte-americana dos filmes de gângster, como Os Bons Companheiros de Scorsese, mas cujas imagens realmente estão mais para o cinema indie, suas derivações que destilam mal Tarantino, versão riquinha de um “gangsta-rap-skating clipe”, o tal Alpha Dog de Nick Cassavetes, ou o que Curtis Hanson tentou fazer com 8 Mile e Eminem. E fica claro, em cada gesto formalista de Mauro Lima, uma necessidade de “fazer bonito”. Há, daí, um jogo curioso de intenções, num filme cujo diretor quer laurear Selton Mello ao mesmo tempo que pretende mostrar uma caligrafia visual que salta tanto aos olhos que chega a pôr em risco a visibilidade da persona de Selton. Não à toa, as duas melhores seqüências do filme são aquelas em que a direção aparentemente interveio pouco: a de João Estrella com a dupla de policiais corruptos e com sua mulher na Europa. A câmera assiste com mais grado e calma à performance de Selton Mello, que, no caso, parece mais livre de um roteiro bastante cheio de intenções, bastante poluído por frases “literárias” e idéias construtoras de uma moral.

Moral, aliás, que surge com tudo no terço final do longa, que avança a partir daquele momento enunciado no início do filme, quando João Estrella vai em cana. Num filme com elenco um tanto “figura carimbada” (Julia Lemmertz, Cléo Pires, o geração praia e saúde André di Biasi, Eva Todor), surge Cássia Kiss, altiva como sempre, no papel da juíza. Vira filme de tribunal, e o protagonista fará um discurso lúcido que explica por que ele ficou nessas, de traficar para consumir e gastar a jamais montar um cartel ou coisa do tipo. Na fala de João no banco dos réus, o contracampo vem como uma pedra áspera, mostrando um primeiro plano da juíza refletindo sobre a coitadice do rapaz. Aquele que tinha ótima vida, bem criado, que mergulhou na tráfico, cuja meta não era acumular mas torrar 1 milhão de dólares e que explica “eu não faço nada, mas sou bem bom no que eu faço” elucida seu (des)caminho, explica “Sou João, nunca soube o que é dentro, o que é fora da lei... a minha vida... as coisas foram acontecendo”. João, meio em lágrimas, é um coitadinho, que nunca teve norteamento moral. E receberá uma lição, quando no manicômio, no momento em que a história vira outra coisa, ingressando numas de “filme de prisão”.

O que era interessante, no que suas ações tinham de amorais e inconseqüentes, numa meio luta entre liberdade de ações e roteiro cheio de intenções, vai ao chão com a vitória do tal roteiro cheio de intenções. Retorna, potente e justificada, a frase de Marguerite Yourcenar. O que deixa claro que a detenção e a reinclusão de Estrella é a cura a um ser antes doente. Estranho que o filme tivesse mostrado Estrella tão generosamente, com câmera e fricotes visuais tão embasbacados com o personagem, tudo muito alegria e humor. Estranho que o clima sério acometa o filme, torne-o um serviço para conscientizar, para alertar sobre o dano das drogas e tráfico. Nada a favor, que fique claro, mas a linguagem dos primeiros 2/3, não corresponde ao 1/3 final. Um filme que muito queria falar, o tempo todo soltando imagens “espertas” e falas “bem sacadas” para ao final promover um discurso de palanque, cuja única sintonia é a visual: Mauro Lima é um artesão sem maior talento, e seu conceito estilístico é de turbulências e saídas de rota.

Curioso que o final na prisão, seguido pelo final otimista e pra cima do cara que encontrou a “moral correta” e ascendeu, faça Meu Nome Não É Johnny lembrar um pouco Prenda-me Se For Capaz. Ali, Spielberg começava seu filme com o personagem de Leonardo DiCaprio numa prisão francesa para, num flashback, mostrar a genealogia do golpista, com muito humor e alguns dramas, mas sempre bastante franco em prescrever as causas (ruína familiar) que levaram-no para o caminho torto. Ao final deste filme de 2002, o rapaz era convidado para trabalhar no FBI, ou seja, apertar a mão da legalidade. Tirando a direção e as opções estilísticas (anos-luz à frente em Spielberg), ambos os filmes são parecidos. Mas parece que Mauro Lima, de fato, estava meio perdido, meio sem norte, ensaiando o salto para onde achava que tinha de ser levada sua história. Isso transparece na tela, que é o que importa. Assim como importa, revendo tudo, percebermos que o diálogo que um filme faz, sobretudo em tempos de distâncias encurtadas e comunicações amplificadas, é sempre bastante múltiplo, transmutando experiências do momento ou outrora, ou mesmo da experiência de seu diretor, e cônscio e inconscientemente. Meu Nome Não É Johnny faz, pelo que aparece através do projetor, um diálogo muito maior com outros cinemas, inclusive o brasileiro em sua tradição e negação, o indie americano e tal, e certamente bem mais importantes de atenção (para análise) que o tal serviço anti-drogas.

Janeiro de 2008

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