Meu
Brasil, de Daniela Broitman (Brasil, 2007) por
Rodrigo de Oliveira Engajamento
em modo automático
Meu
Brasil parece destinado desde sua concepção a ser um projeto de validade vencida,
mas é irônico, quase ao ponto da compaixão, que a própria estrutura dos lançamentos
do cinema brasileiro no circuito e a distância histórica gerada naturalmente por
esse fosso entre realização e exibição deixem tão mais evidentes o quão pobre
de idéias e de operações narrativas o filme é. A história “de época” começa com
a seleção de um grupo de líderes comunitários do Rio de Janeiro para uma viagem
ao Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, num politicamente longínquo janeiro
de 2004. A eleição de três protagonistas (uma gaúcha negra que atua no subúrbio
carioca, o diretor de uma ONG numa favela da capital e um jovem transexual militante
do movimento gay no sul do estado), e os créditos de abertura, apresentando em
letras garrafais uma série de considerações em torno da natureza quase messiânica
do trabalho de liderança comunitária, dão uma pista errada sobre o foco do filme.
Enquanto abraça estes personagens
em toda sua distribuição de boas histórias pessoais e platitudes em relação ao
trabalho social que realizam, Meu Brasil não faz mais que tentar singularizar
um aspecto da militância política pela via da humanização automática (se temos
personagens reais falando de problemas reais “com sua própria voz”, tem-se uma
humanização do processo político e ponto). Operação cansada e retorcida por anos
de documentário no mundo, mas que pode até ganhar algum frescor quando se encontram
personagens interessantes o bastante para isso. Mas o desejo de grande painel
do engajamento é muito maior que a atenção às particularidades da experiência
destes três eleitos, e a dimensão coletiva vai aos poucos minando as poucas forças
que o filme ainda sustentava. O jogo fica claro quando, não por acaso, a própria
diretora do filme aparece em cena. Daniela Broitman é uma das coordenadoras do
projeto não-governamental que está oferecendo esta viagem aos líderes comunitários,
e sua pequena participação se dá na condução de uma palestra sobre o significado
e a importância da reunião daquelas pessoas, e sua projeção rumo a Porto Alegre.
É de um vídeo institucional,
e não de cinema propriamente, que estávamos sendo espectadores até ali. O atraso
é factual (às portas de 2009, não é sem algum sarcasmo que encaramos lemas presentes
repetidos por todo o filme como o “fora a Alca e o FMI!” ou o delírio romântico
ainda existente no início do primeiro mandato de Lula), mas é, acima de tudo,
ontológico. Meu Brasil é o produto da sexta ou sétima geração da utopia
esquerdista que moveu-se por tanto tempo no país e que ressurge no filme já bastante
operacionalizada e consciente das suas fraquezas. Mas, se falamos de ontologia
e não de ideologia é porque há algo na própria natureza do ser (político, mas
não somente) que revive em imagem a emoção e a prática de uma luta social qualquer
que parece ter sido deixado para trás no rumo da História, ou dessa história específica
de Broitman e seus líderes comunitários. Espécie de manual do bom militante, Meu
Brasil atua sobre seus personagens e sobre o ambiente do Fórum Social Mundial
de maneira muito mais perversa que o simples elogio do “um outro mundo é possível”
– uma perversidade curiosamente inocente, porque incapaz de perceber que funciona
a partir de uma mudança radical de postura desta mesma esquerda utópica da qual
o filme é, hoje, apenas um restolho. A
tomada de posição, para além de tudo o que o sentimentalismo do número musical
final da Gaúcha possa sugerir, é bastante pragmática. O poder da instituição é
soberano, seja a representada pela ONG de Daniela Broitman que, gentilmente, convida
militantes pobres para ter contato com o “paraíso” (palavra dita no filme), seja
a representada pela câmera e montagem de Daniela Broitman, também igualmente “gentis”
em suas concessões e oportunidades de acesso. Num jogo de armar, migramos do documentário
social emotivo para o documento oficial de uma organização, onde – erro primário
de todo filme com vontade política – tudo aquilo que se prega pela palavra é negado
constantemente pelo conjunto de imagens. Atuando como a grande estrutura inabalável
que vê as figuras humanas em seu interior como peões no xadrez da afirmação ideológica,
Meu Brasil vai elencando uma série de “tópicos da diferença”, momentos-chave
da experiência do Fórum que nos mostrariam, com provas, a eficiência daquela empreitada.
Uma montagem de depoimentos de pessoas de diversos países dá a dimensão global
do evento, enquanto uma pequena seqüência de troca de contatos telefônicos entre
dois militantes cariocas simboliza o networking dado como imprescindível
para o trabalho social. Mas é quando se ampara nas estrelas do movimento que Meu
Brasil se mostra mais caduco. Estão
todos lá, creditados e devidamente agraciados com uma claque de aplausos montada
como nas séries cômicas americanas: um plano dos discursos de Leonardo Boff, Frei
Betto, Ignácio Ramonet, Eduardo Galeano, José Saramago ou Hugo Chávez é sempre
seguido de um contraplano falso da platéia em polvorosa no ginásio lotado, como
se a própria empostação evangelizadora de cada um deles não bastasse para demarcar
a importância do que dizem. E assim, ouvimos as mesmas frases, as mesmas construções
de sentido, partindo das estrelas e sendo repetidas pelos personagens atomizados.
Referendadas pelo “grande pensamento de esquerda”, o pequeno homem legitima o
discurso por sua condição social. A rede se completa, sem rusgas, sem senões,
sem estranhamentos. E nesse mundo outro, a única coisa que não é mais possível
é acreditar no espírito coletivista e no bom coração de um produto como Meu
Brasil. Abril de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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