ensaios
O jogo de dominó sem as regras do jogo
A brincadeira como potência do cinema
por Cléber Eduardo

Em um momento de Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes, parte da equipe do filme acaba de enfileirar peças de dominó em uma cabana. Estão brincando. São ali equipe e atores, trabalhando e descansando, duas camadas de imagens (a de enunciadores e enunciados). E o dominó com isso? É um jogo de brincadeira, onde brincadeira é palavra-chave, como subversão de jogo, porque jogo são regras. Mas há um jogo com a brincadeira também, jogo jogado com a própria equipe de cinema, sobre o qual retornaremos adiante. O jogo de dominó é jogado com peças organizadas a partir da normatização das associações entre as imagens de cada uma. Pedra com seis bolinhas chama outra com seis bolinhas, uma com duas chama outra com duas e assim por diante em cada ponta do jogo. Há uma lógica anterior à partida para a partida ser jogada. Depende-se de alguns pressupostos, sem espaço para a imaginação. No máximo, para o acaso. Jogo de dominó tem como regra o raccord de signos.

As peças de dominó enfileiradas pela equipe do filme, ao contrário das peças em um jogo de dominó, não são colocadas lado a lado a partir de pressupostos normatizadores. Pouco importa os signos e suas relações. Só importa a brincadeira de colocar peças em uma forma disposta para compor um conjunto. Apenas um exercício que, independente de significados, é movido pelo prazer lúdico, gratuito, sem finalidades, sem ganhadores, sem atendimento a regras, sem relações causais entre os fragmentos. Existe uma diferença entre o jogo e a brincadeira, nesses dois casos, porque o jogo atende a uma funcionalidade de sua própria existência e a brincadeira é a pura expressão do desejo de se fazer alguma coisa pela coisa e não por sua função. Essa é a diferença entre jogar o dominó com suas regras e colocar o dominó em fila. A equipe do filme, dentro do plano, está de brincadeira. Ninguém joga o jogo.

Essa gratuidade de uma experiência – sem regras – é destruída pelo abrir da porta. Entra o produtor do filme. Ele pede ao diretor para filmar o roteiro, trabalhar com objetivo, não filmar qualquer coisa, sem planejamento e cumprimento de prazos, apenas pelo prazer de filmar pessoas e lugares. O produtor não quer apenas o estar lá nas férias, no interior de Portugal, e pede para que se jogue o jogo do cinema, análogo ao jogo de dominó: um e outro jogo com regras pré-definidoras da experiência.  No entanto, esse produtor, homem de regras, entra na brincadeira. Torna-se ator do filme feito pela equipe, pai traumatizado de uma pós-adolescente, com quem, para sua comunidade, mantém uma relação incestuosa.  Na pele desse personagem da ficção, o produtor, já um personagem de ficção na pele de produtor (apesar de ser ele mesmo o produtor de Aquele Querido Mês de Agosto), subverte suas regras.

Para além da dupla camada

Enquanto enunciadores (e não apenas enunciados), diretor e equipe, por outro lado, pautam-se pelo jogo, e não apenas pela brincadeira, que não deixa assim de ser funcionalizada. Essa dupla camada talvez seja o toque de especificidade de Aquele Querido Mês de Agosto, que, embora se filie em diversos aspectos ao encaminhamento para as fronteiras entre a encenação assumida (o filme dentro do filme) e o registro de acontecimentos espontâneos (imagens dos vilarejos), difere-se das divisões entre encenação ficcional e organização documental tão cara hoje ao cinema brasileiro (Serras da Desordem, de Andrea Tonacci; Filme Fobia, de Kiko Gofiman; Moscou, de Eduardo Coutinho; O Rei do Carimã, de Tata Amaral), mas presentes de diferentes formas na história do cinema, de Eu Negro e A Pirâmide Humana, de Jean Rouch, a Verdades e Mentiras, de Orson Welles.

Difere-se por que? Onde se situa, nesse campo muitas vezes dicotômico, Aquele Querido Mês de Agosto? Em primeiro lugar, em outro recanto, porque, em vez de duas camadas, existem outras mais, que inviabilizam leituras de lá (ficção) e cá (documental), ao menos como lá e cá. Não se trata de jogo de aparências e efeitos (como em FilmeFobia e Moscou), nem de mimese autobiográfica tornada auto-reflexiva ao final para se assumir a ficcionalização (como em Serras da Desordem). Também não temos a trapaça revelada como tal e responsável pela suspeita generalizada (como em Verdades e Mentiras ) ou a dramatização terapêutica da ficção com efeitos na vida de atores-personagens antes e depois da ficção (como em Eu Negro e Pirâmide Humana). Aquele Querido Mês de Agosto é, sem deixar de pertencer a essa família do cinema, uma outra coisa. Não esqueçamos que, nesse caso, ao contrário dos outros, a regra é a brincadeira.

Subjetividade somente do filme

Se tomarmos os casos de Moscou e FilmeFobia, por exemplo, não temos aqui busca por intimidades. Não se procura pessoas em suas subjetividades ou em simulações do subjetivo.  Elas são apenas presenças comandadas por falas, menos sobre suas vidas, mais sobre manifestações culturais geradoras da experiência em comunidade (jornal, música, rituais). Mesmo quando essas pessoas falam de si, de suas biografias, é para acentuar sua inserção nessa comunidade – a parte que lhes cabe, em última instância, na produção da cultura local. O fetiche do sujeito singular e dos bastidores de cinema (cultura do extra do DVD sem o poder de denúncia da autoreflexividade dos anos 60-70), coordenadas fortes dos rumos do cinema brasileiro, são aqui jogados para escanteio e assumidos como brincadeira.

É importante notar que, se o filme não quer a subjetividade das pessoas, não deixa de expor a sua. Menos por conta da encenação claramente planejada das cenas com profissionais de sua equipe, mais por conta de determinadas operações estéticas. As mais evidentes são os efeitos de mascaramento para imitar uma visão subjetiva de um olho em binóculo ou travellings em automóveis nos quais vemos o olho do filme percorrendo as paisagens. Também é o caso dos sons captados pelo operador, que garantem o mistério do espaço por não poderem ser identificados, nem escutados pelas demais pessoas nos locais filmados. Temos aí uma primeira pessoa que inclui a pessoa, sentido físico-sensível, e as ferramentas com as quais trabalha.

Porque, se é importante a sensibilidade do técnico de som que capta sons impossíveis de serem ouvidos, em parte por conta de sua imaginação e sensorialidade, não ignoremos o fato de a máquina também “ouvir” esses sons. É por causa dela que os sons são reproduzidos. Temos uma antropomorfização do boom. Pode-se encarar essa experiência como análoga ao discurso de celebração da câmera por Dziga Vertov nos anos 30. A lente enxerga melhor que o olho humano. O boom ouve melhor que o ouvido. Não significa com isso, em nenhum dos casos, que o homem está fora. É ele quem enquadra, quem direciona o microfone. Parece claro que, quando homem sensível e máquinas com potencial de captação e reprodução entram em sintonia, imagens nunca vistas e sons jamais ouvidos são visualizados e escutados. É o cinema.

Funcionalização da brincadeira com a equipe do filme

Os personagens interpretados com seus próprios nomes e funções pelos membros da equipe só aparecem no filme em momentos nos quais estão em relação uns com os outros. Nos momentos nos quais o filme está em relação com pessoas das regiões por onde passa, esses personagens podem até ter suas presenças lembradas a nós pelo direcionamento do olhar ou da palavra de alguma pessoa em quadro para alguma pessoa fora do quadro (da equipe de filmagem), mas não existe retorno do fora de quadro para o quadro a ponto de tornar-se parte do campo cinematográfico. A via é de mão única.

Essa equipe de cinema não está de brincadeira com os moradores do lugar, portanto, mas apenas simulando brincadeira em cenas com função cômica e de engajamento estético, que mostram o desprezo e a indiferença deles pela organização do cinema. Ou pelas regras do jogo do dominó. No lugar da organização, abertura para o mundo. Para fazer o tributo autoparódico da experiência como valor em si, superior ao cinema, o filme vale-se de uma roteirização asseguradora da eficiência. Os membros da equipe só são afirmados como personagens em sequências nas quais tudo está sob controle e eles só precisam se relacionar entre si. Não são afetadas pelas pessoas dos lugares quando estão em quadro. Isso num filme em que presenças são presenças em relação a outras presenças e não per se.

Chegamos assim ao segundo momento de jogo com essa equipe de cinema. Jogo de malha. Duas moças chegam em diferentes profissionais do filme para saber de um teste para atrizes. Ninguém lhes dá a mínima. Não querem saber de testes, de agenda e de prazos, mas apenas jogar a malha.  Há quem possa ver nessa sequência um desmentido das afirmações no parágrafo acima sobre a experiência assegurada da equipe do filme quando se torna personagem do próprio filme por ela realizada. Na sequência da malha, afinal, há personagens locais, não apenas profissionais de cinema. Interação, portanto. Mas é preciso relativizar essa impressão de interação. Porque está claro que a sequência foi planejada, que as moças da comunidade estão ali em uma atuação, que a situação existe por conta de seu potencial cômico – e não por conta de seus supostos riscos de afetação. A equipe de cinema, portanto, está no controle. E a possibilidade dela ser afetada pelas pessoas do lugar onde estão é colocada na coleira quando a cena desse contato com os locais está obviamente cumprindo um planejamento e impedindo qualquer chance de imprevisto nesse encontro. A equipe de cinema está em relação a si mesmo, mesmo provocando relações com ela.

Isso é um dado negativo? Não. É apenas uma evidência de que, se a procura é pelo efeito da espontaneidade e de brincadeira, as estratégias são pensadas, planejadas – ou seja, uma brincadeira não sem jogo, mas com regras próprias. Há momentos nos quais as pessoas dos vilarejos onde a equipe vai fundem-se com a condição de personagens de uma ficção sem estarem nos papéis do filme em realização pela equipe (o filme dentro do filme). Essa situação acontece de modo explícito quando dois atores desse “filme dentro do filme” conversam sobre a experiência de terem sido atores. Estão de costas para a câmera. Essa é uma cena com aparência de espontaneidade, de não-planejamento, que acontece diante da câmera como se a câmera fosse ignorada, mas é acima de tudo uma cena para a câmera, reivindicada pelo aparato e, provavelmente, planejada para acontecer tal qual acontece para nós. Os dois homens em cena são personagens. Uma nova camada.

Na continuação dessa cena bastante planejada, quando os dois homens caminham, com a câmera a segui-los com apagamento de sua presença (sem vermos a câmera), temos uma nova camada sobreposta. Eles encontram uma velha, que, além de se dirigir a eles, comentando sobre sua participação no filme dentro do filme e perguntando sobre a participação deles, dirige-se para quem está atrás da câmera. Os dois homens insistem em ignorar o aparato, como se não estivessem em cena. Vemos tanto a manutenção do apagamento da presença da câmera como a denúncia de sua presença pelo olhar e pelas palavras dirigidas pela velha. Vemos um desmascaramento de qualquer possibilidade de espontaneidade sem construção pelo filme. Tudo é construção.

Essa relação entre construção e apagamento de construção é também uma questão para a organização do encadeamento de planos e para os próprios enquadramentos. Se a estrutura parece pensada para não ser notada como lógica, se parece empenhada em nos soar aleatória, como na fila de peças de dominó, os enquadramentos também nos deixam perceber muito pouco de uma composição. Esses apagamentos dos artifícios só tornam mais complexas as relações entre situações e imagens no filme. Algo está sempre a escapar como se nenhuma enunciação fosse possível, nenhuma regra para o jogo, como se só fosse possível a brincadeira com as aparências e com a estrutura. Uma brincadeira sem intenções de leitura do lugar, das pessoas e da própria linguagem desenvolvida pelo filme.

“Eu quero o que está lá”, afirma Miguel Gomes, no papel de Miguel Gomes, em diálogo final com Vasco, o técnico de som capaz de captar sons não escutados por mais ninguém. Ele coíbe a interferência. Quer apenas presenças. Mas apenas presenças, apreende-se do filme, são impossíveis. As presenças das pessoas e dos lugares estarão sempre em relação às presenças da equipe e das máquinas, mesmo se as presenças de equipe e máquina estão em relação consigo mesmas em primeiro lugar. E é o caso. Porque a equipe de cinema é a protagonista do filme, ela decide quando quer brincar, quando quer jogar, como quer brincar e jogar, sem transferência desse poder para as pessoas dos lugares filmados. Esses são personagens somente.

A equipe é, antes de ser personagem, protagonista e enunciadora. Não adianta por isso adotar como forma de aproximação a distância da câmera em muitas das sequências de shows musicais para produzir neutralidade do olhar em nome da captura de simples presenças. É possível lembrar de Lumière – com suas imagens de alteração no mundo, não apenas alteração gerada por câmera, mas alteração do mundo captada pela câmera. Lumière dizia que o cinematógrafo, aparelho sem futuro (comercial, artístico, científico), servia apenas para registrar movimento (no tempo). Um corpo, um show, um barco. Em nosso caso, o de um filme com som e narrativa, movimentos de voz e, de forma ampla, do próprio encadeamento das imagens (e sons).

Como nas imagens da companhia Lumière, há autonomia do fragmento e, talvez mais importante, os movimentos são multidirecionais: imagem para um lado, som para outro, transbordamento das informações. Presenças puras, movimentos apenas? Não. Presenças e movimentos para o filme. Nenhuma neutralidade. Mesmo sem serem afetados em cena pelo que acontece diante da câmera, quando não estão eles mesmos na frente da câmera, os profissionais da equipe são com quem todos estão em relação. Nesse sentido, Aquele Querido Mês de Agosto promove o encontro entre Lumière e Jean Rouch, com suas operações nas quais assumem um ponto de onde olham e de onde mobilizam as alterações todas, sem deixar com isso de ser um filme de dinâmica particular, consciente de como a imagem é, ao mesmo tempo, jogo e brincadeira.

Setembro de 2009

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