Meninas, de Sandra Werneck (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo

O primeiro passo do crítico é sempre perguntar-se sobre o filme visto. Perguntar-se significa fazer perguntas ao filme e responder por ele, sem trair suas imagens. O que pretende? Com quais estratégias?

Meninas pretende mostrar, por meio de casos específicos, uma situação social geral: a gravidez precoce em ambientes de carência social. Sua disposição é a de coletar experiências individuais e familiares para ilustrar um conhecimento, anterior ao filme, sobre o fenômeno social com o qual está lidando. Parte-se de um sintoma geral para localizá-lo nos fragmentos das vidas selecionadas. Parte-se de suposições ou índices para serem provadas na pesquisa. Essas pessoas observadas, parcialmente como indivíduos e em parte como objeto social, nos conduzirão por um micro-painel, que, na soma das partes, ambiciona obter ressonâncias macros. Neste movimento, o filme não demonstra interesse especial pelas meninas e por suas histórias – algo revelado por sua estrutura narrativa e pelo ritmo em geral. Está atrás do conjunto das histórias, do caráter sintomático das partes e da soma delas. Não por acaso começa em uma fila de serviço de saúde pública – sem individualidades – e termina em um enterro no qual vemos um corpo se afastando à distância (sinal de uma lógica social que confirma o recorte do filme). Há uma tese já pronta que não se assume como tese, e que se traveste de observação sem direções estabelecidas.

Sandra Werneck nos dá imagens e palavras de quatro adolescentes grávidas de favelas cariocas, de suas famílias e de um jovem futuro pai dos futuros filhos de duas dessas garotas. Por meio de depoimentos para a diretora, surgem sinais do contexto “favela”. Pais amargurados ou desiludidos desabafam sobre o peso representado pelos filhos, enquanto filhas com ar de menina e conversa de mulher, quando não estão de bate-boca com as mães (figuras-chave), oscilam entre momentos de brincadeiras com a vida e outros reveladores de uma ausência de projetos de futuro. A busca do prazer no sexo precoce parece o único escape. Os fragmentos dessas falas trazem à tela, ainda, o encanto das adolescentes com os signos de poder do “movimento” – o tráfico –, e um certo ar de luto das famílias quando são informadas do sexo feminino dos bebês. A condição de mulher, na geografia social ali demarcada, tem ecos de O Círculo, do iraniano Jafar Panahi, estabelecendo um elo entre culturas tão distintas, com uma problemática feminina formatada por contextos tão distantes, mas com efeitos tão próximos: o lamento do nascimento da mulher (uma sina). Temos assim os signos de um entorno social, construído na montagem como indutor do fenômeno “gravidez precoce”. A pobreza é o combustível da multiplicação de rebentos em moçoilas e crianças – assim como o regime político-religioso e seus efeitos machistas são os culpados em O Círculo.

Isso é o que pretende exibir Meninas – ao menos pelo que vemos na tela. Tal meta resulta em uma denúncia social sem denunciados – já que culpar a pobreza é vago – e em uma aproximação protegida contra a intimidade com os seres. Tenta-se humanizar o índice social, mas o índice, mesmo sem números na tela, mantém-se ali o tempo todo. Esse efeito de distanciamento entre o filme e as pessoas é gerado principalmente por uma estrutura de paralelismos, que passa de um núcleo familiar ao seguinte sem nos facilitar uma familiarização direta. Ao cortar constantemente de “um caso para o outro”, Meninas suscita o risco de não vincular as pessoas às suas histórias, já que, em vez de se reter espaços, reações e presenças, prioriza-se um andamento de correria narrativa em forma de mosaico. Quando o filme deseja dar uma pausa e simular uma observação concentrada, lança-se à tela uma imagem de alguém absorto, olhando a televisão ou coisa alguma, mas em enquadramentos que, embora possam ter sido “roubados”, parecem planejados para criar efeito dramático e estético, posados em sua pretendida espontaneidade. Nessas passagens,  o estar absorto (dentro da lógica da montagem) é um estar impotente, olhando para um vazio ou para um muro a cegar o futuro.

Meninas insere-se em uma tentativa de alguns diretores de radiografar, pelo documentário ou pela ficção, condutas de segmentos da juventude brasileira dos centros urbanos. Havia algo desse diagnóstico ou mapeamento em Seja o que Deus Quiser, de Murilo Salles, com sua proposição de choque de classes. Também se percebe essa disposição em Cama de Gato, de Alexandre Stockler, agora se concentrando nos filhos da burguesia. Os documentários Pro Dia Nascer Feliz, de João Jardim, centrado no universo de duas classes sociais de estudantes adolescentes, e Sou Feia Mas Tô na Moda, de Denise Garcia Brasil, que vai para dentro do ambiente sexualizado e iconográfico do funk feminino, também direcionam suas lentes para a juventude de agora. Existe um desejo comum a todos: captar um determinado sinal da realidade, como forma de dar a ele mais espaço de construção audiovisual se comparado às telereportagens – e provavelmente Falcão: Meninos do Tráfico seja um mix dessa proposta, ou um “tele-docu-reportagem”. Procura-se nesses filmes diagnósticos, mesmo que sem enxergar processos, mas apenas sintomas.

Meninas procura equilibrar-se no hibridismo das formas interativas e observacionais. Sandra Werneck pouco pergunta – ou não se ouve perguntar – e não aparece em quadro. Mesmo os momentos mais próximos de uma entrevista, ou de uma conversa curiosa, tendem a atenuar o grau de intervenção. Predomina o pacto documental centrado na idéia de que a câmera não está sendo totalmente percebida. E assim, vemos supostos momentos de intimidade de quem procura ignorar a câmera – e apenas salienta a consciência da presença dela com essa tentativa. Talvez essa relação com a câmera, fingindo uma espontaneidade e uma ignorância do “olho invasivo” (a lente), seja a mesma adotada pelo filme em sua relação com as pessoas ali. Simula-se uma intimidade e uma ignorância do modelo sociológico, que não disfarça a ausência de um e a presença de outro. Meninas talvez seja um filme em crise com sua própria proposta: encontrar o equilíbrio entre os espaço do indivíduo e sua redução a um caso sociológico.


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