in loco - cobertura dos festivais
Memórias
de Xangai (Hai Chang Shuan Qi),
de Jia Zhang-Ke (China/Holanda, 2010)
por Eduardo Valente
O
rio segue seu curso
Apresentando seu filme para a platéia de Canens, em maio último,
Jia Zhang-Ke disse que, depois de olhar com atenção para a China
contemporânea nos seus últimos filmes, ele sentia necessidade
de fazer um filme que olhasse para o passado, por ter um pressentimento
de que boa parte de tudo aquilo que ele tentava retratar tinha
suas chaves neste tempo anterior, na História em
suma. E, de fato, Memórias de Xangai
se estrutura exatamente desta maneira: um diálogo constante
entre presente e passado, através da dimensão da memória que sobressai
no filme a partir dos depoimentos de 18 pessoas que relembram
trechos da sua história pessoal (e, a partir dela, iluminam aspectos
da história do país). A câmera do fotógrafo habitual de Jia, Yu
Lik-Wai, traça movimentos aos quais os conhecedores da obra do
cineasta já estão bastante acostumados: uma exploração cuidadosa
da paisagem (no caso, principalmente a de Xangai), sempre a partir
da inserção do elemento humano dentro dela; e, num elemento particularmente
presente nos seus documentários, uma atenção extrema a planos
de detalhes e closes em rostos que sempre impressionam pelo apuro
visual com que são construídos – mesmo quando resultam extremamente
simples, os planos de Jia e Yu nunca são banais.
Falamos
acima de documentário, e é um fato que Memórias de Xangai
pode ser principalmente caracterizado como tal, mas ainda restam
aqui reflexos do seu ousado trabalho anterior, 24 City,
através da utilização, mais uma vez, da figura de sua atriz-fetiche
Zhao Tao, que paira pelas ruas de Xangai como um fantasma – termo
que é mais que adequado, como veremos quase no final do filme.
No entanto, a maneira como a ficção mais efetivamente se insere
como parte do que é o filme é através do uso extremamente respeitoso,
e mesmo amoroso, que Jia faz de uma série de filmes da história
chinesa, de trabalhos mais antigos até os recentes Su Zhou
River ou Flores de Xangai. Não por acaso, vários dos
entrevistados têm relação direta com a História do cinema chinês:
desde cineastas a uma atriz, passando mesmo por um homem que acompanhou,
representando o Estado, as filmagens que Antonioni fez no país
no começo da década de 70. Uma das principais afirmações que Memórias
de Xangai parece fazer é de que o cinema é parte essencial
da construção da memória e da história de um país – e não se pode
deixar de notar como o próprio filme parece ter muita noção da
sua importância como objeto histórico já na hora de sua realização.
Finalmente, é interessante perceber a maneira
como Jia parte de Xangai como seu objeto principal de atenção,
mas o filme acaba sentindo a necessidade de ir parar em Taiwan
e Hong Kong, que surgem nas próprias lembranças de seus entrevistados
como destinos a (des)cobrir, uma vez que a história da chamada
Liberação de Xangai (chamada de Tomada de Xangai pelos que moram
fora do país) também é a história do exílio nestes dois destinos
dos chineses que apoiavam (ou simplesmente estavam ligados a)
o regime de Chiang Kai-Shek. Esta disposição de ampliar o seu
objeto na medida em que percebe esta necessidade dá uma idéia
da organicidade do processo de Jia, que não deixa que as fronteiras
de um objeto pré-determinado (Xangai) impeçam o filme de ir atrás
do seu destino natural. Memórias de Xangai é principalmente
assim, com o perdão da metáfora fácil e tão usada: parece fluir
com a naturalidade de um rio, ou da história do homem e de um
pais, incorporando necessariamente tudo aquilo que vai surgindo
no seu caminho, e mudando junto com isso.
Maio de 2010
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