in loco - cobertura dos festivais
Memória Cubana (idem),
de Alice de Andrade e Iván Napoles (Brasil/Cuba/França, 2010)
por Fábio Andrade
Imagens
que ficam
Embora Memória Cubana seja dirigido pela
brasileira Alice de Andrade, em parceria com o veterano diretor
e fotógrafo cubano Iván Napoles, pode-se dizer que é um
autêntico filma cubano, pois não só nasce dentro do ICAIC
(Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos) como
lida diretamente com um material de grande valor histórico para
o país: os noticieros – cinejornais realizados pela equipe
coordenada por Santiago Álvarez, durante e após a revolução cubana.
Alice e Iván recuperam este material com a intenção de contar
não exatamente a história deste país, ou sequer a do grupo, mas
sim a do encontro entre essas duas partes, registrado naqueles
pequenos rolos de filme. A abordagem desse rico material guarda
poucas surpresas: Alice procura os sobreviventes do grupo (que
incluía o fotógrafo e, posteriormente, co-diretor do filme, Iván
Napoles), e monta entrevistas atuais junto a trechos dos cinejornais
originais. Há, naturalmente, um valor gigantesco na simples recuperação
e exibição dessas imagens, muitas delas extraordinárias não só
como registro da História, mas também como cinema.
Mas
o que mais interessa em
Memória Cubana é a maneira como Alice
de Andrade realiza, muito discretamente, operações cinematográficas
contundentes na estrutura do filme, que alteram – de maneira suave,
mas decisiva – a relação do espectador com o filme. Em primeiro
lugar, há um aspecto metalinguístico: Ivan Nápoles é o câmera
do material produzido para Memórias Cubanas, mas também
de diversos daqueles noticieros. Com isso, temos um choque
constante de dois momentos históricos, onde todas as diferenças
de textura (da película para o vídeo), visuais (do preto e branco
para as cores), convencionais (as diferentes naturezas dos enquadramentos;
a mudança do registro imediato em câmera no ombro para as entrevistas
planejadas em tripé) e materiais (a diferença do mundo daquela
época, para o mundo de agora) são colocadas em contato.
É mais interessante, porém, que Alice de Andrade
e Iván Napoles nunca tragam o questionamento da natureza das operações
para o primeiro plano do filme. A metalinguagem está ali, evidente;
não é necessário fazer dela um tópico para que ela seja uma questão
essencial. Essa atitude não só vai de encontro às estratégias
de ponta do documentário brasileiro recente, como evidencia uma
postura diante daquele material que se põe em plena sintonia com
a posição realizadora das equipes dos noticieros: colocar-se
a serviço de algo. Assim como o grupo do ICAIC trabalhava como
uma ferramenta da revolução, Memória Cubana abaixa o tom
do presente em nome da revitalização de um passado. O interesse
do filme está nos noticieros, e são eles que motivarão
os procedimentos de direção, fotografia e montagem. É preciso
que o filme sirva à História.
Não
deixa de ser sintomático de nossos tempos que um filme onde tudo
está tão evidente corra o risco de passar como uma obra retraída,
de intenções tímidas. Ao contrário, o material dos cinejornais
é tão suficiente que uma instabilidade de registro pode ser percebida
a partir do próprio material – em vez de, como anda em moda, da
conversa sobre o material. Dois exemplos: quando Iván Napoles
conta da chegada do grupo ao Vietnã, é perceptível que os planos
dos cinejornais são feitos de dentro de um jipe do exército. Essa
simples constatação já é suficiente para o espectador problematizar
a instância enunciadora dos noticieros, e de como ela influenciará
a construção daquelas imagens. Essa discrição, porém, é mais por
uma lucidez realizadora do que por um acovardamento diante da
história. Em um dos melhores momentos do filme, um técnico de
som do ICAIC conta sobre a chegada da equipe de filmagens no Cambodja,
uma semana após a abertura do país. Eles filmam as ruas absolutamente
vazias e, na hora de revisar o material, percebem que o único
ruído da filmagem vinha do próprio gravador de som. Se falamos,
portanto, de operações e procedimentos, é porque a discrição e
a humildade diante do material recuperado são conquistados por
meio delas, e elas têm um influência decisiva na compreensão dessa
história. Memória Cubana talvez nunca pegue o espectador
pelas tripas, mas nos segura firme e decididamente pelos olhos.
Junho de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|