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Godard encontra Allen
por Diego Assunção


Meetin’ WA

O que Jean-Luc Godard tem em comum com Woody Allen? Talvez a preferência por óculos de imensos arcos ou a calvície proeminente – talvez a importância de ambos para a história do cinema. É inegável, porém, o apreço que os dois artistas demonstraram pelas coisas da vida e a preocupação dos dois à forma de se colocar isso no cinema, apreço que fez com que esses “blackbirds” (o modo como Godard denomina Woody Allen e a si mesmo no vídeo), artistas livres para alçar vôos, entoassem suas distintas canções para as pessoas nas cidades ouvi-las.

O vídeo começa com os contornos de um corpo masculino, de costas para a câmera e de frente à uma janela em que é possível deslumbrar a grandiosidade da cidade. O corpo imerso em sombras enquanto a cidade adiante irradia luminosa. Pela narração e com a movimentação do corpo na janela vislumbra-se a figura do condutor do vídeo, Jean-Luc Godard, que por alguns segundos, e com a Rhapsody in Blue de Gershwin, pode ser confundido com o ilustre convidado, Woody Allen. A brincadeira de Jean-Luc Godard com a figura de Woody Allen nesse início (reproduzindo Manhattan, o filme de Allen – foto acima) é não menos que genial. Godard anuncia o encontro com seu “mon ami” quando um retrato desenhado de Woody Allen se funde ao corpo sombrio de Godard.

Dessa fusão se estipulam as “regras do jogo”: após a inscrição do título do filme, e no meio dos muitos intertítulos que Godard faz uso, tem-se uma câmera posicionada nas costas de Godard e de frente para Woody Allen; posicionamento que imprime a sensação de Godard estar fitando e dialogando com seu reflexo (a máxima “eu, um outro”) e que pela não utilização do contracampo (tem-se apenas o campo) ilustra o pensamento que Godard explicitaria na cena em que palestra no filme Nossa Música (acima): o contracampo nada mais é do que a repetição do campo. Quando Godard se permite filmar a si mesmo, recorrendo ao contracampo, ele o faz para tão logo sobrepor na tela à imagem de um desenho do Allen (“Jean-Luc Godard, um Woody Allen”?).

O encontro começa com Godard perguntando a Allen sobre a relação dos críticos com os seus filmes. Allen coloca em pauta também as diferenças entre um diretor de fotografia americano e um europeu, utilizando como base o trabalho de Gordon Willis (que trabalhou com ele em Manhattan e Annie Hall) e Carlo Di Palma (colaborador de Antonioni em obras importantes e que acabara de trabalhar com Allen em Hannah e suas Irmãs). Segundo Allen, o fotógrafo americano trabalha os planos pensando nos cortes enquanto o europeu busca resolver o trabalho com a movimentação da câmera, zooms – enquanto Allen gesticula falando dos movimentos empregados pelo fotógrafo europeu, Godard brinca com os recursos do vídeo, direcionando a tela em um zoom para o rosto de Allen (a tela ficando preta até só restar o rosto), provavelmente demonstrando a “herança” européia.

Entre complicações nas traduções feitas por uma mulher que acompanha Godard, o encontro ruma para a discussão principal do vídeo: a televisão é uma má influência para a audiência e para o cinema? Enquanto Allen fala que deveria ser um ato criminoso descobrir filmes dos irmãos Marx ou Cidadão Kane, pela televisão e não em uma sala de cinema, Godard sobrepõe fotos dos filmes de Allen, fotos de Orson Welles, desenhos, uma encenação na qual o próprio Godard, sentado no chão e rodeado de fitas de vídeos, olha e empilha-as.

Enquanto os sagrados templos do cinema são revisitados apenas na fala de um dos personagens (Woody Allen), ou em uma pintura que se sobrepõe a sua fala, o vídeo não era só algo a se temer, mas uma realidade a se vivenciar – que tanto torna possível o encontro de Godard e Allen quanto demonstra o receio do artista a sua adesão (Godard em meio às pilhas de fitas). O vídeo, ao final, foi o que restou da verdade (ou mentira) em movimento, verdade/mentira em alguns quadros por segundo; o vídeo parece emperrar em alguns momentos no qual Woody Allen fala, mas se o vídeo não é a oitava maravilha do mundo, foi o que restou para a sobrevivência do cinema, ou simplesmente desse encontro.

O título Meetin’ WA pode sugerir apenas uma despretensiosa documentação de uma conversa entre artistas, mas não nos enganemos, pois a ambição de Godard o levou a fazer dessa conversa uma verdadeira investigação sobre as possibilidades do vídeo, do flerte entre recito (ficção?) e depoimento (documentário?), enfim, Godard continuava ali a empreender uma busca pela luz que o levasse a escuridão. E os “blackbirds” continuaram a alçar vôos e a cantar suas canções.


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