plantão do YouTube
Godard encontra Allen
por Diego Assunção
Meetin’
WA
O que Jean-Luc Godard tem em comum com Woody Allen?
Talvez a preferência por óculos de imensos arcos ou a calvície
proeminente – talvez a importância de ambos para a história do
cinema. É inegável, porém, o apreço que os dois artistas demonstraram
pelas coisas da vida e a preocupação dos dois à forma de se colocar
isso no cinema, apreço que fez com que esses “blackbirds”
(o modo como Godard denomina Woody Allen e a si mesmo no vídeo),
artistas livres para alçar vôos, entoassem suas distintas canções
para as pessoas nas cidades ouvi-las.
O
vídeo começa com os contornos de um corpo masculino, de costas
para a câmera e de frente à uma janela em que é possível deslumbrar
a grandiosidade da cidade. O corpo imerso em sombras enquanto
a cidade adiante irradia luminosa. Pela narração e com a movimentação
do corpo na janela vislumbra-se a figura do condutor do vídeo,
Jean-Luc Godard, que por alguns segundos, e com a Rhapsody
in Blue de Gershwin, pode ser confundido com o ilustre convidado,
Woody Allen. A brincadeira de Jean-Luc Godard com a figura de
Woody Allen nesse início (reproduzindo Manhattan, o filme
de Allen – foto acima) é não menos que genial. Godard anuncia
o encontro com seu “mon ami” quando um retrato desenhado de Woody
Allen se funde ao corpo sombrio de Godard.
Dessa
fusão se estipulam as “regras do jogo”: após a inscrição do título
do filme, e no meio dos muitos intertítulos que Godard faz uso,
tem-se uma câmera posicionada nas costas de Godard e de frente
para Woody Allen; posicionamento que imprime a sensação de Godard
estar fitando e dialogando com seu reflexo (a máxima “eu, um outro”)
e que pela não utilização do contracampo (tem-se apenas o campo)
ilustra o pensamento que Godard explicitaria na cena em que palestra
no filme Nossa Música (acima): o contracampo nada mais
é do que a repetição do campo. Quando Godard se permite filmar
a si mesmo, recorrendo ao contracampo, ele o faz para tão logo
sobrepor na tela à imagem de um desenho do Allen (“Jean-Luc Godard,
um Woody Allen”?).
O encontro começa com Godard perguntando a Allen
sobre a relação dos críticos com os seus filmes. Allen coloca
em pauta também as diferenças entre um diretor de fotografia americano
e um europeu, utilizando como base o trabalho de Gordon Willis
(que trabalhou com ele em Manhattan e Annie Hall)
e Carlo Di Palma (colaborador de Antonioni em obras importantes
e que acabara de trabalhar com Allen em Hannah e suas Irmãs).
Segundo Allen, o fotógrafo americano trabalha os planos pensando
nos cortes enquanto o europeu busca resolver o trabalho com a
movimentação da câmera, zooms – enquanto Allen gesticula
falando dos movimentos empregados pelo fotógrafo europeu, Godard
brinca com os recursos do vídeo, direcionando a tela em um zoom
para o rosto de Allen (a tela ficando preta até só restar o rosto),
provavelmente demonstrando a “herança” européia.
Entre complicações nas traduções feitas por uma
mulher que acompanha Godard, o encontro ruma para a discussão
principal do vídeo: a televisão é uma má influência para a audiência
e para o cinema? Enquanto Allen fala que deveria ser um ato criminoso
descobrir filmes dos irmãos Marx ou Cidadão Kane, pela
televisão e não em uma sala de cinema, Godard sobrepõe fotos dos
filmes de Allen, fotos de Orson Welles, desenhos, uma encenação
na qual o próprio Godard, sentado no chão e rodeado de fitas de
vídeos, olha e empilha-as.
Enquanto os sagrados templos do cinema são revisitados
apenas na fala de um dos personagens (Woody Allen), ou em uma
pintura que se sobrepõe a sua fala, o vídeo não era só algo a
se temer, mas uma realidade a se vivenciar – que tanto torna possível
o encontro de Godard e Allen quanto demonstra o receio do artista
a sua adesão (Godard em meio às pilhas de fitas). O vídeo, ao
final, foi o que restou da verdade (ou mentira) em movimento,
verdade/mentira em alguns quadros por segundo; o vídeo parece
emperrar em alguns momentos no qual Woody Allen fala, mas se o
vídeo não é a oitava maravilha do mundo, foi o que restou para
a sobrevivência do cinema, ou simplesmente desse encontro.
O título Meetin’ WA pode sugerir apenas
uma despretensiosa documentação de uma conversa entre artistas,
mas não nos enganemos, pois a ambição de Godard o levou a fazer
dessa conversa uma verdadeira investigação sobre as possibilidades
do vídeo, do flerte entre recito (ficção?) e depoimento (documentário?),
enfim, Godard continuava ali a empreender uma busca pela luz que
o levasse a escuridão. E os “blackbirds” continuaram a
alçar vôos e a cantar suas canções.
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