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A política de Maysa na televisão japonesa
por Cléber Eduardo

Meu Mundo Caiu

No plano mais aberto, entre dois japoneses, um apresentador e um tradutor, Maysa já se desloca. Sem saber o que estão a dizer, move a cabeça, embora o corpo permaneça rígido, com as mãos apoiadas no ar, ou na saia esparramada, como se precisasse segurar em algo para ter uma referência física no espaço. Oscilação entre o plano mais aberto e o fechado nela. Ela fala. Olha para o extracampo, à esquerda, o que motiva a abertura do plano.

O tradutor pergunta sobre a autenticidade do carnaval no Brasil em Orfeu Negro, de Marcel Camus? Estamos nos anos 60. Ela, cigarro entre os dedos, mexendo na mão, mãos no limite do quadro, olhos baixos, reage. Afirma sua postura e sua música sobre a construção do estereótipo. Afirma seu lugar na música brasileira longe do carnaval. Os olhos baixos sobem, a cabeça ergue-se, encara o extracampo direito e, antes do corte para o plano aberto, ouvimos e vemos: “O samba que canto não tem nada a ver com carnaval”, dito em voz firme e olhar sólido.

Não são apenas as palavras, mas uma atitude de corpo; não é a relação entre variantes de enquadramentos e cortes, mas a presença nesse quadro. A expressividade da linguagem está no próprio corpo e nas expressões faciais de Maysa. Enquanto os dois japoneses falam entre si, após o pito esclarecedor da cantora, ela fica absorta, olhando de cabeça erguida, mas olhos novamente baixos, entre os dois corpos, no meio deles, procurando uma linha de fuga daquela experiência, ou raramente saindo de sua experiência “íntima” para a experiência pública.

Maysa canta com as mãos para atrás, como se estivesse apoiada em uma mureta, ou na barra do vestido, como se não pudesse se mover. No close, vemos que sua interpretação é de atitude, mais que vocal. Se o corpo fica imóvel, como se não tivesse centro de gravidade e precisasse se auto-imobilizar, a cabeça se move, ergue-se, balança, realizando duelo com as palavras cantadas. Quando canta “e agora diz que tem pena de mim”, seu corpo nos encara com um movimento de cabeça, os olhos nos desafiam para um duelo, um acerto de contas, transformando-nos em algozes.

A cabeça volta a fazer movimentos firmes, combinados com uma expressão carregada de resistência, quando de sua boca sai, desafiante e orgulhosa, “eu nada pedi, nem a você, nem a ninguém”. A boca faz um estranho movimento mais adiante, trêmulo, mostrando que, por trás da atitude de narradora cênica de mulher superior e resistente às quedas, um descontrole ficou registrado, algo que, na interpretação, trai o traje da sobrevivência defendida. No entanto, na sequência desse movimento aparentemente não programado dos lábios, o plano aberto nos mostra um corpo e uma expressão perdidos, sem saber mais qual será o próximo passo, abortando um passo próximo, claramente sem entender o andamento musical na qual está enquadrada, sem saber o que fizeram com seu ritmo, com suas durações, procurando saber onde está ela própria dentro daquela reformulação de sua arte para torná-la mais formatada, e decidindo por abandonar o jogo sem abandoná-lo.

A orquestra toca, Maysa se move, quase se retorce em seu minimalismo de movimentos, mas não volta. Resiste a participar do jogo ou, simplesmente, o abandona por um tempo para sabotá-lo. Resolve tomar parte daquele imponderável e também agir por dentro dele. Corte para os créditos. Essa dissonância final é gerada tanto pela atitude de alheamento de Maysa quanto pela incapacidade da direção de decidir qualquer coisa, mantendo a imagem de Maysa sem corte por um minuto, à espera de seu retorno. Enquanto isso, ela passa a mão pelo rosto, alisa o colo, antes de uma sutil, mas evidente, prova de recusa a tudo aquilo. A música começa aos 1 min30s de vídeo e Maysa pára de cantar aos 2min44 s. Sem a voz, o plano fica nela por 1 minuto, cintura para cima, só com som da orquestra, sem corte. Ou seja, ela canta segundos a mais do que fica em cena sem cantar. E sem nenhum corte em seu silêncio. Maysa se impõe.

O que se vê nessa dissonância, além dessa presença intensa e ausente de Maysa, é um jogo de forças. Maysa cria o imprevisto na mesma medida em que pode se tornar uma vítima dele. Há em cena uma relação de forças entre uma artista consciente da importância de sua arte para si mesma e uma estrutura de utilização da arte para fins não especialmente artísticos. Nessas imagens, todo um campo de tensões está em cena

Podemos até ver nele uma operação de resistência artística na indústria, mas só parcialmente à indústria, porque a arte de Maysa nesse vídeo não é mais a arte de Maysa, modificada por interesses e ruídos fora de discussão nesse momento, mas uma arte ao mesmo tempo adulterada e defendida por Maysa. Adulterada por Maysa porque ela está lá. Defendida por que ela se retira do jogo, mesmo permanecendo no palco, mostrando-se como vítima da adulteração e também sujeito do processo, como se, por trás da armadura, houvesse a má consciência de estar no jogo, de estar em jogo, ao mais ou menos evidente desde o início do primeiro vídeo.

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Manhã de Carnaval

Maysa começa balançando o colo, talvez para acompanhar parodicamente o andamento de rumba da televisão japonesa, e logo a câmera fecha em seu rosto. Estaremos mais uma vez diante de outro duelo entre transmissão e matéria prima humana. Ao fugir do corpo cheio de balanço erótico de Maysa para a imagem mais segura de seu rosto, fecha-se demais o plano, quase chegando aos extremos de um Carl Dreyer em O Processo de Joanna d’Arc, ampliando a expressividade de olhos e de boca de Maysa. A fuga para o rosto não dá certo, porque a interpretação de Maysa, em campo e fora dele, no centro e das bordas do quadro, coloca o controle em ameaça

Ela se movimenta tanto que mal cabe no enquadramento. Ela se desenquadra. Não importa se esta era sua estratégia, como claramente é no vídeo anterior, mas o fato é que seu corpo reage a uma situação, sai da marcação e do protocolo do melhor quadro, começa a dominar a maneira de estar em cena. Fica sem a boca, sem um dos olhos. Canta com ironia e raiva. Nos momentos instrumentais, sua expressão é de uma energia indescritível, o braço direito, no extracampo, move-se aparentemente como reação negativa. Ela se aproxima da câmera, mexe em algo fora do campo, faz uma careta, corte para um fade. Maysa não se contém. Se no primeiro vídeo, apenas a cabeça se movimenta, aqui ela é pura expansão, para frente, para os lados, usando, para causar essa turbulência em seu minimalismo e no samba rumba à moda oriental, os próprios limites do quadro.

Nos agradecimentos, ela pede a palavra. Faz sua intervenção de reflexividade. Informa que os playbacks, com os quais cantou, foram gravados no Japão. E diz que não correspondem ao “nosso ritmo”. Era a primeira cantora brasileira a cantar na TV japonesa. Os movimentos de seu corpo, assim como sua imobilidade, fala nas imagens sobre sua presença. Ou melhor: sobre a relação de poderes na qual a cantora está inserida e com a qual procura devolver o ruído causado à sua arte.

Julho de 2008

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