plantão do YouTube A política de Maysa
na televisão japonesa por Cléber
Eduardo
Meu Mundo Caiu
No plano mais aberto, entre dois japoneses, um apresentador e
um tradutor, Maysa já se desloca. Sem saber o que estão a dizer,
move a cabeça, embora o corpo permaneça rígido, com as mãos apoiadas
no ar, ou na saia esparramada, como se precisasse segurar em algo
para ter uma referência física no espaço. Oscilação entre o plano
mais aberto e o fechado nela. Ela fala. Olha para o extracampo,
à esquerda, o que motiva a abertura do plano.
O tradutor pergunta sobre a autenticidade do carnaval
no Brasil em Orfeu Negro, de Marcel Camus? Estamos nos
anos 60. Ela, cigarro entre os dedos, mexendo na mão, mãos no
limite do quadro, olhos baixos, reage. Afirma sua postura e sua
música sobre a construção do estereótipo. Afirma seu lugar na
música brasileira longe do carnaval. Os olhos baixos sobem, a
cabeça ergue-se, encara o extracampo direito e, antes do corte
para o plano aberto, ouvimos e vemos: “O samba que canto não tem
nada a ver com carnaval”, dito em voz firme e olhar sólido.
Não são apenas as palavras, mas uma atitude de
corpo; nãoé a relação
entre variantes de enquadramentos e cortes, mas a presença nesse
quadro. A expressividade da linguagem está no próprio corpo e
nas expressões faciais de Maysa. Enquanto os dois japoneses falam
entre si, após o pito esclarecedor da cantora, ela fica absorta,
olhando de cabeça erguida, mas olhos novamente baixos, entre os
dois corpos, no meio deles, procurando uma linha de fuga daquela
experiência, ou raramente saindo de sua experiência “íntima” para
a experiência pública.
Maysa canta com as mãos para atrás, como se estivesse
apoiada em uma mureta, ou na barra do vestido, como se não pudesse
se mover. No close, vemos que sua interpretação é de atitude,
mais que vocal. Se o corpo fica imóvel, como se não tivesse centro
de gravidade e precisasse se auto-imobilizar, a cabeça se move,
ergue-se, balança, realizando duelo com as palavras cantadas.
Quando canta “e agora diz que tem pena de mim”, seu corpo nos
encara com um movimento de cabeça, os olhos nos desafiam para
um duelo, um acerto de contas, transformando-nos em algozes.
A cabeça volta a fazer movimentos firmes, combinados
com uma expressão carregada de resistência, quando de sua boca
sai, desafiante e orgulhosa, “eu nada pedi, nem a você, nem a
ninguém”. A boca faz um estranho movimento mais adiante, trêmulo,
mostrando que, por trás da atitude de narradora cênica de mulher
superior e resistente às quedas, um descontrole ficou registrado,
algo que, na interpretação, trai o traje da sobrevivência defendida.
No entanto, na sequência desse movimento aparentemente não programado
dos lábios, o plano aberto nos mostra um corpo e uma expressão
perdidos, sem saber mais qual será o próximo passo, abortando
um passo próximo, claramente sem entender o andamento musical
na qual está enquadrada, sem saber o que fizeram com seu ritmo,
com suas durações, procurando saber onde está ela própria dentro
daquela reformulação de sua arte para torná-la mais formatada,
e decidindo por abandonar o jogo sem abandoná-lo.
A orquestra toca, Maysa se move, quase se retorce
em seu minimalismo de movimentos, mas não volta. Resiste a participar
do jogo ou, simplesmente, o abandona por um tempo para sabotá-lo.
Resolve tomar parte daquele imponderável e também agir por dentro
dele. Corte para os créditos. Essa dissonância final é gerada
tanto pela atitude de alheamento de Maysa quanto pela incapacidade
da direção de decidir qualquer coisa, mantendo a imagem de Maysa
sem corte por um minuto, à espera de seu retorno. Enquanto isso,
ela passa a mão pelo rosto, alisa o colo, antes de uma sutil,
mas evidente, prova de recusa a tudo aquilo. A música começa aos
1 min30s de vídeo e Maysa pára de cantar aos 2min44 s. Sem a voz,
o plano fica nela por 1 minuto, cintura para cima, só com som
da orquestra, sem corte. Ou seja, ela canta segundos a mais do
que fica em cena sem cantar. E sem nenhum corte em seu silêncio.
Maysa se impõe.
O que se vê nessa dissonância, além dessa presença
intensa e ausente de Maysa, é um jogo de forças. Maysa cria o
imprevisto na mesma medida em que pode se tornar uma vítima dele.
Há em cena uma relação de forças entre uma artista consciente
da importância de sua arte para si mesma e uma estrutura de utilização
da arte para fins não especialmente artísticos. Nessas imagens,
todo um campo de tensões está em cena
Podemos até ver nele uma operação de resistência
artística na indústria, mas só parcialmente à indústria, porque
a arte de Maysa nesse vídeo não é mais a arte de Maysa, modificada
por interesses e ruídos fora de discussão nesse momento, mas uma
arte ao mesmo tempo adulterada e defendida por Maysa. Adulterada
por Maysa porque ela está lá. Defendida por que ela se retira
do jogo, mesmo permanecendo no palco, mostrando-se como vítima
da adulteração e também sujeito do processo, como se, por trás
da armadura, houvesse a má consciência de estar no jogo, de estar
em jogo, ao mais ou menos evidente desde o início do primeiro
vídeo.
* * *
Manhã de Carnaval
Maysa começa balançando o colo, talvez para acompanhar
parodicamente o andamento de rumba da televisão japonesa, e logo
a câmera fecha em seu rosto. Estaremos mais uma vez diante de
outro duelo entre transmissão e matéria prima humana. Ao fugir
do corpo cheio de balanço erótico de Maysa para a imagem mais
segura de seu rosto, fecha-se demais o plano, quase chegando aos
extremos de um Carl Dreyer em O Processo de
Joanna d’Arc, ampliando a expressividade de olhos e de boca
de Maysa. A fuga para o rosto não dá certo, porque a interpretação
de Maysa, em campo e fora dele, no centro e das bordas do quadro,
coloca o controle em ameaça
Ela se movimenta tanto que mal cabe no enquadramento.
Ela se desenquadra. Não importa se esta era sua estratégia, como
claramente é no vídeo anterior, mas o fato é que seu corpo reage
a uma situação, sai da marcação e do protocolo do melhor quadro,
começa a dominar a maneira de estar em
cena. Fica sem a boca, sem um dos olhos. Canta
com ironia e raiva. Nos momentos instrumentais, sua expressão
é de uma energia indescritível, o braço direito, no extracampo,
move-se aparentemente como reação negativa. Ela se aproxima da
câmera, mexe em algo fora do campo, faz uma careta, corte para
um fade. Maysa não se contém. Se no primeiro vídeo, apenas a cabeça
se movimenta, aqui ela é pura expansão, para frente, para os lados,
usando, para causar essa turbulência em seu minimalismo e no samba
rumba à moda oriental, os próprios limites do quadro.
Nos agradecimentos, ela pede a palavra. Faz sua
intervenção de reflexividade. Informa que os playbacks,
com os quais cantou, foram gravados no Japão. E diz que não correspondem
ao “nosso ritmo”. Era a primeira cantora brasileira a cantar na
TV japonesa. Os movimentos de seu corpo, assim como sua imobilidade,
fala nas imagens sobre sua presença. Ou melhor: sobre a relação
de poderes na qual a cantora está inserida e com a qual procura
devolver o ruído causado à sua arte.