Maria (Mary), de Abel Ferrara (EUA/Itália, 2005)
por Eduardo Valente

O mistério segundo Ferrara

Se Maria lida com o Homem perante o mistério da fé, o filme de Abel Ferrara acaba por nos impor um outro mistério como sua maior permanência: o mistério do cinema. Porque, se é fato que os dilemas dos personagens de Ferrara (os de Juliette Binoche e Forrest Whitaker, mas também, e especialmente os do cineasta vivido por Matthew Modine – que espelha muitos aspectos do próprio Ferrara) nos colocam questões mais do que impactantes sobre a existência humana e as relações entre homens e mulheres (entre outras), nenhuma delas teria metade da força com que surgem na tela se não fosse a capacidade do cineasta de encarná-las não somente através de diálogos ou trajetórias dos personagens, mas principalmente através da exploração da linguagem do cinema – e por isso leia-se sempre imagens e sons. Há na densidade do trabalho dos escuros em Ferrara, em seus movimentos de câmera, em suas fusões, em seu uso da trilha sonora, algo que escapa completamente da nossa capacidade de dar conta através de palavras no papel. Algo que só se materializa através das imagens em movimento e do som, algo que se chama cinema – em seu mais completo mistério.

Desde as primeiras imagens, em que Juliette Binoche aparece interpretando Maria Madalena no filme-dentro-do-filme que é dirigido por Modine (Este é o meu sangue é o título do filme, que se confunde com o filme de Ferrara algumas vezes, num trabalho que lembra o posterior O Crocodilo, de Moretti), há no registro das imagens uma clara tentativa de buscar os significados de se refilmar a história de Cristo, de se reconstruir sua trajetória através do cinema (é muito marcante o momento em que passam pela tela, rapidamente, alguns trabalhadores do set carregando a pedra que cobre a entrada da caverna do túmulo de Cristo, como se fosse – e provavelmente é – feita de isopor). Qual o significado desta história hoje, o filme se pergunta seguidamente – principalmente através das entrevistas com verdadeiros teólogos que aparecem no filme falando com o personagem de Whitaker, um apresentador de TV. O personagem de Whitaker, aliás, é o que tem mais “tempo de tela” no filme, e que mais tem sua história pessoal explorada – uma história até certo ponto banal, de traição e esposa mal amada, mas que ganha outra relevância pela investigação da fé que o personagem constrói no seu programa, e que acaba por tomá-lo completamente.

Todos os três protagonistas do filme vivem experiências de “sideração/iluminação” em momentos diferentes da história, mas nenhum deles encontrará a paz por conta disso. Mesmo o de Binoche, que logo que o filme começa parece encontrar um estado mais avançado de espírito, logo se vê face ao imponderável com a explosão de uma bomba em plena celebração do Pessach em Jerusalém (numa das mais fortes seqüências do filme – talvez junto com o ataque ao carro em que viajam Modine e Whitaker). Violência e paz, fé e descrença, força e fraqueza, humano e divino. Destroçados pela dualidade, ao final os personagens parecem apenas continuar tateando no escuro em busca de alguma luz que facilite lidar com a dureza da existência, alguma vivência que chegue perto da paz que vemos na seqüência das mulheres com o barco na costa (dentro do filme de Modine, claro). No entanto, aos gritos e apelos de cada um deles, a resposta que fica é mesmo a da impassível figura do Cristo na cruz que “responde” aos gritos de Whitaker: o silêncio divino, que impõe ao homem a opção de acreditar ou não que há algo mais além desta dolorosa passagem pela Terra.

Se o filme de Ferrara não toma partido de nenhum de seus personagens sobre a fé religiosa, o fato é que a experiência de assisti-lo nos impõe, ao menos, a fé no cinema, e a possibilidade de uma experiência transcendente através da estética e da arte.


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