Maria
(Mary), de Abel Ferrara (EUA/Itália, 2005) por
Francis Vogner dos Reis
A imagem é sagrada Por que,
entre tantos personagens bíblicos, Abel Ferrara vai escolher justamente Maria
Madalena como personagem-título de seu novo filme? Ele a escolhe porque em alguns
evangelhos Maria Madalena é a primeira a ver (e por isso crer) na imagem
do absurdo: um homem ressuscitado. E não somente ver, mas interiorizar essa imagem
e voltar aos outros para anunciá-la. Abel Ferrara busca fazer uma integração imagem-crença-corpo,
e não por acaso um dos entrevistados que aparecem no filme é o teólogo francês
Jean-Yves Leloup que certamente possui um dos trabalhos teológicos contemporâneos
mais fascinantes: faz teologia a partir do corpo, do ritual como prática pura,
das evidências do inexplicável do cotidiano (da beleza e do horror). Os teólogos
que aparecem no filme conferem às narrativas mitológicas da vida e ressurreição
de Jesus um aspecto imagético que é o que Ferrara estuda durante todo o filme.
Se no filme dentro do filme, a primeira revelação é do Cristo Ressuscitado, Maria
Madalena não crê até ver Jesus ressuscitado, e ela volta ao esconderijo dos apóstolos
para revelar a imagem que testemunhou e por isso acreditou. Como não viram, eles
consideram a notícia um absurdo. Toda a sorte de naturezas
da imagem em Maria compõem o estudo de Ferrara sobre a verdade particular
delas, seja vídeos, imagens de afrescos religiosos, de televisão (o que na verdade
acontece na maioria de seus filmes desde Dangerous Game). Assim Maria
não é um filme sobre problemas espirituais e religiosos de modo mais confessional.
O que interessa agora é entender que a única herança que temos são as imagens
criadas – e o indiscernível que às vezes surge delas. Em vista disso, Ferrara
arma um ponto de partida dos mais interessantes: a atriz Marie Palesi (Juliete
Binoche) depois de interpretar Maria Madalena no filme This Is My Blood,
decide sair da Itália, local em que o filme foi realizado, e ir para Jerusalém
a fim de iniciar uma jornada espiritual inspirada pela sua personagem. O filme
é dirigido pelo cineasta Tony Childress, que também interpreta Jesus (um Matthew
Modine ensandecido). Um ano depois, em Nova York, o apresentador de TV Theodore
Younger (Forest Whitaker) realiza uma série de entrevistas sobre o mito e a história
de Jesus. Seu objetivo é entrevistar o Childress, pois seu filme começa a causar
polêmica antes mesmo de sua estréia. Cada
um desses personagens tem uma relação muito particular com as imagens: o cineasta
que as cria e acredita mais nelas como significante do que como significado, a
atriz que se vê no interior dessas imagens e é tomada pela fé de sua personagem,
e o apresentador de TV que apesar de ignorar as imagens, sobrevive delas e com
elas. As imagens são evidências e é até redundante dizer isso, mas nesse caso,
elas levam o filme para uma zona indiscernível, porque são animadas por uma fé
em um mundo que visivelmente é abandonado por Deus: na violência urbana brutal
e aparentemente sem motivo de uma pedrada de um rapaz no vidro do carro de Younger;
o horror de uma explosão logo após uma cerimônia judaica – como se Deus ignorasse
tal rito; o choro estridente e insistente de um bebê prematuro, abandonado em
uma estufa sem possibilidade de um contato humano mais próximo. O choro da criança,
solitário e gritado, ressoa todo o absurdo do abandono na existência. Nunca
a prática de Abel Ferrara foi a de consagrar formas. Sua crença na imagem é uma
crença de abertura, na verdade muito pouco – ou quase nada – confessional, no
sentido mais tradicional da palavra. Abel Ferrara é o oposto de Martin Scorsese
que declara fé muito firme nas formas que ele mesmo consagrou, é mais ortodoxo
que Ferrara, que para o bem e para o mal, não sai de sua “zona de segurança”,
de sua “catequese” cinematográfica. A zona de Ferrara é do conflito, do choque.
Ele parte da objetividade das imagens, não de uma imagem de especulação, seu exercício
de liberdade é mais perigoso. Maria certamente é o tratado disso, um ato
estético e moral equivalente a atear fogo no Museu do Vaticano. A
questão central não é de uma postura anti-clerical: Ferrara não toca em assuntos
tabus da religiosidade católica com intenção de atingir a igreja como instituição.
Não interessa a Ferrara discutir posições de poder oficiais. Para ele interessa
o poder sim, mas o baixo poder, aquele exercido de uma maneira delinqüente: para
ele um criminoso e um cineasta não são muito diferentes, ambos têm poder, mas
um baixo poder, uma declaração de guerra, que os faz dar murros em ponta de faca:
o poder de um cineasta e de um criminoso os faz naturalmente ser personagens de
uma tragicidade patética. Maria não é como incendiar a basílica de São
Pedro (símbolo do poder dogmático e religioso católico), mas o Museu do Vaticano
mesmo, que consagra a história das formas ocidentais (da Grécia ao ocidente cristão),
a história de uma arte ligada à harmonia, ao belo, e à concepção ocidental-européia.
O cineasta é adepto sim da provocação, mas não de provocaçõezinhas sensacionalistas
integradas a polêmicas corriqueiras, ou de uma crítica à tradição como faz com
brio o cineasta Marco Bellocchio, mas de uma provocação que vai além do protocolo
das questões correntes sobre religião e cultura. Ferrara
filma de uma maneira (muito evidente em Maria) que não se arroga “artística”:
enquadramentos “possíveis” não ideais, granulação e iluminação que parecem jogar
tudo (e sempre) mais ao breu, a imagem da cidade de Nova York longe de qualquer
sofisticação a que estamos acostumados – tudo isso feito com enorme rigor. Nos
últimos filmes (de maior repercussão crítica, que se diga), Abel Ferrara não mudou,
ele continua exploitation e ordinário, mas aconteceu uma apuração estética
que faz com que a cada novo filme ele experimente motes e elementos novos. É do
seleto time de cineastas contemporâneos que, apesar de terem um estilo e obsessões
muito particulares, nunca são redundantes e apontam caminhos de consonâncias diferentes
a cada filme. Se esse é um dos filmes mais assustadores
de Ferrara é porque ele lida com a evidência do absurdo. A fé nasce desse absurdo
e o fato de “existir” é perturbador. Perturbador porque é uma condição naturalmente
solitária. Todos os personagens são radicalmente solitários: do cineasta Childress
exibindo seu filme sozinho à revelia da multidão e de uma ameaça de bomba dentro
da sala de cinema, passando pela atriz Marie e sua ascese espiritual a partir
de uma criação ficcional, por Younger que busca a fé em meio ao abandono e ao
silêncio de Deus, e chegando ao bebê pré-maturo que berra seu “abandono assistido”.
Mas se são essas evidências, se são essas imagens que Ferrara têm, é com elas
que ele vai urdir seu universo. Ele acredita nelas, acredita nelas como fato material
e evidente. editoria@revistacinetica.com.br
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