in loco - cobertura dos festivais

Terça, Depois do Natal (Marti, Dupa Craciun),
de Radu Muntean (Romênia, 2010)

por Eduardo Valente

Teatro da vida

Por um lado, Terça, Depois do Natal, embora não necessariamente um filme melhor do que seus antecessores mais famosos (Sr. Lazarescu, Polícia Adjetivo, 4 Meses..., A Leste de Bucareste – todos, aliás, destaques a partir de Cannes), parece marcar um ápice inultrapassável num processo de depuração desta que parece ser a verdadeira obsessão deste chamado “novo cinema romeno”: conseguir atingir pela ficção um sentimento de realidade absoluta, de um registro “mosca na parede” que tenta apagar todos os traços da sua construção como linguagem, para registrar aqueles momentos pequenos do cotidiano das pessoas que o cinema clássico de ficção costuma relegar ao chão do corte de montagem. Terça, Depois do Natal atinge de fato o cume deste sentimento, neste que certamente será o mais elogiado de seus atributos: parece “a vida real”. Se esta é uma aspiração justa e ou interessante para o cinema de ficção já será uma outra longa (e insolúvel) discussão, mas é difícil alguém conseguir negar esta capacidade impressionante do filme de Muntean.

Curioso, porém, que o filme que faça isso seja o que tem, dentre todos os exemplares romenos recentes, a “historinha” (se contada em duas linhas) mais reconhecível segundo todos os clichês da narrativa clássica: homem se apaixona por mulher mais nova, e precisa decidir se deixa ou não seu casamento de mais de década e sua casa com mulher e filha de 10 anos. Portanto, que Muntean (que, é importante, que se diga, já tinha 3 longas anteriores no currículo) consiga injetar tal sentido de arejamento numa estrutura tão reconhecida indica que há algum talento a mais em trabalho aqui do que tão somente o de reprodução naturalista do mundo. Muito desse talento vem de uma capacidade de reconhecimento e recriação, via encenação, de alguns desses momentos de intimidade entre as pessoas que o cinema tantas vezes pena por conseguir mostrar. Ou seja, não falamos apenas de “a vida como ela é”, mas principalmente da capacidade de retratar a evolução dos corpos no espaço (um espaço cinematográfico muito bem pensado na fotografia em scope) e, acima de tudo, no tempo (onde os planos longos são, de novo, essenciais).

Mas o principal atributo que talvez tenha sido pouco discutido nesta nova geração de cineastas é a enorme capacidade deste verdadeiro manancial de grandes atores que os filmes romenos têm revelado – e, não por acaso, vários deles atravessam muitos dos filmes. E é aí que a idéia de teatro, quase sempre usada no cinema para falar de uma encenação artificial em termos de espaço ou de atuação, precisa ser retomada e colocada em questão neste filme (e talvez no cinema romeno recente como um todo – A Leste de Bucareste, principalmente). Porque a maneira como Muntean organiza a cena frente a câmera (embora ela não deixe de se mover), e como abre espaço decisivo para a presença dos atores ser o lugar onde, finalmente, o filme acontece ou não, aproxima muito tudo isso que ele faz com tanta força, e que parece tão intrinsecamente cinematográfico, do que de fato é essencial ao teatro – e ao melhor teatro.

Maio de 2010

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