Maré
- Nossa História de Amor, de Lucia Murat (Brasil/França/Uruguai,
2007) por Cléber Eduardo
Favela
dos amores minados Há filmes estranhos pela própria natureza
de seus projetos. É o caso de Maré – Nossa História de Amor, de Lucia Murat,
que, ao propor uma versão parcialmente musical e coreografada de Romeu e Julieta,
adota como referencial West Side Story (1961), de Robert Wise, para tratar
da guerra civil na favela da Maré (Rio de Janeiro). É nesse ambiente de vielas
e sinais de violência, de coações e bailes funk, que, de maneira previsível, os
jovens Analidia (Cristina Lago) e Jonatha (Vinicius D Black), ambos alunos de
uma companhia de dança de uma voluntária social, Fernanda (Marisa Orth), são proibidos
pelos dois lados do tráfico de viver o amor um pelo outro e pela dança. Ela é
filha de um chefe do tráfico. Ele, irmão de outro. Estamos em um romance juvenil
entre balas e beijos – mais balas que beijos, a rigor. O
título já carrega uma disposição no mínimo ambígua, que parte de uma relação com
Favela dos Meus Amores (1936), de Humberto Mauro, cuja cópia está sumida
faz algumas décadas. Não fica claro se em Nossa História de Amor, essa
primeira pessoa do plural refere-se somente aos personagens ou a todo o Brasil.
No primeiro caso, o de se referir aos personagens, o título sugere uma fusão entre
instância narrativa e Analidia/Jonatha, eliminando diferenças quaisquer. O “nossa”
refere-se à história e ao amor do casal, como se, por estarem à frente do conflito,
eles assumissem o filme como discurso deles, ou, mais apropriadamente, delegassem
o discurso para Lucia Murat. Isso nos estimula a não perceber o olhar de alguém
de fora das situações para nos colocar dentro da narrativa como se ela fosse comandada
pelos moradores da Maré. Já no segundo caso, o desse “nossa
história de amor” ser de todo o Brasil, a lógica é a do sintoma. A impossibilidade
do romance seria típica do país – não um caso específico da Maré e de seus habitantes,
tampouco dos personagens filmados por Lucia Murat. Estaríamos vivendo uma realidade
em que as regras são dadas por criminosos, que, em última instância, inviabiliza
as chances de ascensão e os laços de afeto. O traficante pode ajudar com dinheiro
a comunidade, mas sua lógica é da guerra pelo solo. Portanto, um olhar determinista
e impotente – como já era o de Quase Dois Irmãos, quando, ao final,
adolescente desfigurada no hospital e avó estupefata demonstram, sem meias imagens,
a dificuldade de crer em algo. Maré poderia se chamar, assim, “Quase
Casal”. O elo da classe média-elite com a favela em Quase Dois
Irmãos e Maré apenas ensina a quem estende a mão que
o gesto solidário parece conto de fadas social em um mundo da competitividade
sanguinolenta. Impossível não ficarmos tentado a ver em Fernanda a própria posição
de Lucia Murat: há ali uma necessidade de ação, visando atenuar as carências e
brutalidades, mas, que, ao final, mostram não ter nenhum efeito, ao menos no eixo
central que acompanhamos. O contexto de metrancas e ameaças leva a iniciativa
da voluntária e o romance proibido parecer mesmo peça de teatro. Surge,
então, a dúvida: se constata a inviabilidade da transformação pela arte da comunidade
em guerra, qual seria o sentido afirmativo de se destacar as coreografias e a
potências daqueles corpos? Seria para constatar o desperdício de vidas e talentos?
Essa constatação não esvazia a ação social? Ao contrário de outros filmes recentes,
ter habilidades não é salvo conduto em Maré que, nesse sentido, está mais
para Orfeu, de Cacá Diegues, que termina com o artista morto. Mesmo
passando por cima de umas tantas forçadas de mão do roteiro (entre as quais o
desfecho), é difícil ignorar a tensão na convivência entre as coreografias e o
apelo realista, com os números corporais-musicais interrompendo a ação dramática,
ora em um duelo de gangue em baile funk, ora no trânsito (Dançando no Escuro?
Fama?). Essas passagens produzem a banalização da violência, das armas
e de todo o contexto em torno dos personagens, porque, acima de tudo, explicitam
os mecanismos da encenação e representação. Há significativo risco de sermos colocados
de fora da história para vermos a imagem atendendo um projeto. É possível mesmo
dançar com armas e manter um espírito crítico sobre a violência? Filme
aparentemente conduzido nas filmagens com mais de uma câmera para facilitar a
decupagem dos espaços, Maré – Nossa História de Amor tem seus trunfos,
em geral, nas interpretações – com destaque para a expressividade de Cristina
Lago e para o habitual carisma performático de Babu Santana (que, a despeito de
estar sempre no mesmo registro e no mesmo tipo de personagem, é realmente uma
força cênica). Apertou, chama o Babu que, na pior das hipóteses, ele resolve.
Também é necessário reconhecer a boa seqüência na praia, quando, ao perceberem
a presença, jovens de classe média se levantam, assustados, com receio de estarem
ás vésperas de um arrastão. Momento bem resolvido que, porém, logo é sucedido
por um número musical – aparentemente disposto a comentar a ação, em vez de acreditar
na própria experiência mostrada. Setembro de 2007editoria@revistacinetica.com.br
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