em primeira pessoa
Concertos para a juventude
por Eduardo Valente

Sexta 4 de julho, 23h, Cinelândia, cinema Odeon. Sendo a primeira sexta do mês, é noite de Maratona, noite rara de um cinema de 600 lugares quase sempre lotado, desde ela se transformou num destes eventos “da moda” de uma juventude carioca. Eu particularmente não vou à Maratona há alguns anos, tanto por não ser um fã de eventos superlotados, como pelo cardápio de pré-estréias de luxo que passou a ser oferecido (e responsável em parte pela lotação, claro), que, livre do “desejo da novidade” tão típico da juventude, prefiro ver semanas depois em cartaz numa calma sessão de dia de semana. Só que essa noite tem algo de diferente: a programação traz três filmes dos anos 60/70 de Robert Altman – cortesia de uma parceria com a produção da mostra que trouxe todos os 37 longas do diretor aos CCBBs ao longo do mês de junho. Me rendo, então, ao programa.

Ao chegar no cinema, não posso negar uma certa surpresa: os maiores de 30 anos são uma minoria colossal - talvez sejamos 10, 20 no máximo. De resto, centenas (a julgar pelo que vejo dentro do cinema, chutaria em torno dos 400, 450) de jovens de cerca de vinte anos – um pouco mais ou um pouco menos –, pouquíssimos deles parecendo sequer terem idéia de quem é esse tal de Robert Altman. Por um lado, me decepciona a ausência do público cinéfilo mais velho, que de resto já havia faltado também na mostra no CCBB (pelo menos o carioca) e que parece não valorizar mais um evento raro como poder ver estes três filmes no Odeon. Por outro, me preocupa se este público que está ali, claramente vestido e preparado para mais um dos seus “programas do fim de semana” terá realmente interesse em ver estes filmes, em interagir com eles de maneira minimamente aberta, dedicada.

A sessão começa com O Perigoso Adeus (The Long Goodbye), de 1973, uma programação que me parece particularmente corajosa, por se tratar de um filme de 1h53 de duração, todo ele lidando com a idéia de trama de uma maneira bastante particular, à beira do surrealismo muitas vezes, cujas referências (cinema noir, Raymond Chandler, contracultura anos 70) me parecem bem distantes do público presente. Ao longo da sessão, algumas risadas fora de lugar, mas muitas, muitas mesmo, muito dentro de lugar, neste filme que é um primor da ironia altmaniana, toda ela encarnada no Marlowe de Elliott Gould. No plano final quase catártico, o cinema explode em aplausos, daqueles gostosos de ouvir, pela sinceridade e a curtição.

Depois do primeiro filme, temos sempre 45 minutos de DJ tocando do lado de fora da sala, cervejas na rua, e sempre um público menor na segunda sessão (muitos continuam a noite em outro lugar). Mas, nesta noite, a quantidade de pessoas voltando me surpreende ainda mais: são muitos da garotada entrando para ver, a partir das 2h20 da matina, M.A.S.H. Quem já viu o primeiro, a essas alturas já espera aquela corrosão toda na tela, aquela chuva de referências pouco dominadas (aqui, claro, a guerra da Coréia fazendo papel de Vietnã, mas também toda uma brincadeira com o cinema de guerra), e aquela franca defesa do anti-herói como figura de possível identificação. Mais gargalhadas, muitas, calorosas, e um aplauso ainda mais retumbante, lá pelas 4h10 da manhã de sábado, entremeado inclusive por um berro de “Bravo!”.

Não tenho condições de continuar na sala para o grand finale que exibirá Voar é com os Pássaros (Brewster McCloud), em parte por ter tido a chance de vê-lo numa outra sexta de noite no CCBB-RJ há menos de duas semanas, mas principalmente porque, afinal (e como aquela juventude toda à minha volta não me deixa negar), eu não sou mais nenhum garoto. Mas, nem preciso: já antevejo que quem daquela platéia ali se dispuser ao programa final vai se esbaldar com a porralouquice completa do filme mais livre entre tantos que Altman fez. E, o mais importante: eu já ganhei a minha noite. Não só por ter visto a única exibição que estes dois filmaços vão ter num cinema como o Odeon em uma cópia linda como estas nas próximas décadas (ou quiçá, jamais), num evento sem repetição possível, daqueles que dão ao cinema algo da aura de uma peça de teatro, umshow, um concerto especial. Mas principalmente por ter visto uma platéia que ainda mal descobre o que é e pode ser o cinema (num tempo em que se diz que ele, como o conhecemos, está acabando) sendo vencida por aquelas imagens em cinemascope fenomenal, com tramas subversivamente contestadoras de tanta coisa, com um trabalho de som tão brilhante - terem curtido isso, terem podido ver que talvez aquela relação platéia-tela grande possa ser algo mais que um "programa da noite".

Só torço que o grupo Estação se permita voltar a ousar desta maneira, se aproveitando de uma contingência de mercado como a da Maratona de hoje, para dar algo a este público que ele não teria outra maneira de saber que pode gostar, e querer mais, como claramente descobriu naquela noite. Afinal, é disso que se trata: não negar o mundo à nossa volta, mas saber subvertê-lo, usar-se dele para ir além. Porque senão, não tem jeito: em poucos anos ninguém talvez dê valor à experiência do cinema, pelo menos certamente a de um cinema outro que o sempre visto/exibido. E aí, quem não vai ter mais público, antes de tudo, é o próprio Estação.

Julho de 2008


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