sessão cinética Minha
Noite Com Ela (Ma nuit chez Maud), de Eric Rohmer (França, 1969) por
Rodrigo de Oliveira
O
deus das coincidências
Françoise é loira e católica,
não lê as instruções da lata de chá e por isso não sabe que são necessários sete
minutos para a infusão perfeita. Mais importante, ela libera seu novo amor, Jean-Louis,
do peso do conceito: seu universo é o do prazer pela trivialidade, das coisas
experimentadas antes que se dê nome a elas. Françoise acredita no poder de escolha,
eventualmente até passível de ajuda divina, mas no fim das contas uma tarefa exclusiva
do homem e de sua consciência. Uma personagem que defenda o livre-arbítrio, justo
ele, o primeiro dos direitos humanos suprimidos pelo cinema. De
fato, Minha Noite Com Ela é tanto mais um exercício de depuração da fé
quanto mais se compre a idéia de que há ali um movimento do desconhecido ao conhecido,
das dúvidas às certezas, da verbalização da crença que se transforma, “por milagre”,
na experiência mesma dela. Não compramos a idéia, e talvez só assim o filme de
Eric Rohmer possa ser habitado da mesma maneira que sua câmera habita as igrejas
que abrem e fecham a narrativa: ao mesmo tempo um espaço dominado pela liturgia
já decodificada e acompanhada em coro pelos fiéis catequizados e um espaço aberto
ao espanto diante do apelo mais óbvio – apenas porque uma palavra repetida carrega
sempre o peso de seu momento, de seu contexto, da inflexão da voz, de uma troca
de olhares, de um desejo de suspensão, porque a palavra certa só pode ser igual
na diferença. Jean-Louis, temente a Deus, não se furta em
usar as prerrogativas Dele para anunciar sua trajetória: tomando a narração em
off, nos informa dia e hora exatos do momento em que soubera que Françoise
seria sua esposa. Para que a profecia se realize, teremos que passar pelo anúncio
do próprio título do filme, uma noite na casa de Maud. Reencontrando um amigo
dos
tempos de colégio, Jean-Louis dirá que, uma vez que seus caminhos normais nunca
se cruzam, é apenas no extraordinário que tal reencontro pode se dar, e aí está
uma idéia que percorre toda a duração de Minha Noite Com Ela. Tudo está
às claras, ordinarizado: esposas eleitas, processos de purificação enfileirados,
e sem a imprevisibilidade do futuro, sem a possibilidade do destino nem a ingerência
das escolhas individuais, restará ao cinema de Rohmer fabricar os territórios
do acaso, de tal modo evidentes nessa construção que, em algum momento, como num
sermão do bispo, algo parecido com uma revelação irromperá daquilo que nos parecia
menos disposto a ela. Aí talvez resida o grande encanto que o jovem cineasta e
crítico tinha por Alfred Hitchcock desde o fim dos anos 50: o suspense que surge
do saber, e não da surpresa, que desafia a lógica justamente por ser absolutamente
calculado em sua arquitetura (e as referências constantes a Blaise Pascal e sua
“esperança matemática” não estão aí à toa). Personagens
finitos presos à infinitude de um país chamado cinema, organizado por um cineasta
ao qual não se deve o temor, mas a retribuição da gentileza: é só porque Minha
Noite Com Ela oferece uma visão tão generosa do já-visto que podemos experimentá-lo
com a sensação da novidade. Um filme-de-apartamento, de corpos que interagem num
espaço restrito à movimentação e que, portanto, só pode lhes oferecer caminhos
através do verbo, e ainda assim, como o próprio Jean-Louis, tudo o que pedimos
à Graça (este outro termo usado para designar a arte) é que nos faça entrever
a possibilidade do ser. O ser que acontece nos intervalos entre os acasos e as
coincidências, e que é tão programado quando estes dois últimos, mas que ainda
assim surge milagroso: uma criança que interrompe a montanha-russa existencial
dos adultos cheios-de-si para testemunhar mais uma vez o piscar das luzes de uma
árvore de Natal antes de dormir, uma Maud de cabelos negros soltos e envolvida
num manto branco como se fosse a própria Anunciação vivificada, uma nova criança,
percebida como o único abismo do desconhecimento real, que receberá atenção específica
da câmera num fim de semana na praia. Eric Rohmer filma os homens para perceber
neles os meninos, esta sensação pré-objetal, ali quando ainda eram, de fato, decodificações
impossíveis, imagens em processo, abertas à surpresa. Há mesmo em todo santo uma
espécie de loucura, como diz o padre na missa final. E a loucura talvez seja essa:
a de acreditar que, quando tudo parece já ter sido vivido, tudo ainda resta a
se viver. Novembro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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