ensaios
Ressuscitando o western
De Anthony Mann aos irmãos
Coen
por Rafael Castanheira Parrode
A
certa altura de Bravura Indômita, filme dos irmãos
Coen, refilmagem do clássico de Henry Hathaway, era o nome
de Anthony Mann que ecoava por todos os cantos da tela. Era o
James Stewart de The Naked Spur, ou Henry Fonda, o homem
dos olhos frios, ou ainda Victor Mature de O Tirano da Fronteira
que vinham à mente, e não John Wayne. Afinal, Rooster
Cogburn (Jeff Bridges) era como um híbrido decadente do
xerife "Morg" Hickman (Fonda) de The Tin Star (foto)
com o pistoleiro vingativo Howard Kemp (Stewart) e o selvagem
beberrão Jed Cooper (Mature). Mann, mestre dos westerns
psicológicos, filmava personagens extremamente ambíguos,
que margeavam fronteiras morais, que se desequilibravam em sua
dualidade. Homens do oeste, trágicos, mas absolutamente
humanos. Seus protagonistas encarnavam esse anti-herói
repleto de dúvidas, angústias, tão cheios
de segredos, ódio e violência, às vezes um
bêbado, outras um oportunista ou um vingador. Nunca sabíamos
de fato quem eram aqueles personagens indecifráveis, esfinges
que se transmutavam o tempo todo, que se revelavam pouco a pouco.
Em 1969, quando Hathaway filmou seu Bravura Indômita,
o western era um gênero que estava sendo reinventado, tentando
reencontrar seu público com as óperas desvairadas
de Sergio Leone e a consequente disseminação e popularização
dos westerns spaghetti ao redor do mundo, ou com o realismo
e a violência viscerais do Samuel Peckinpah de Wild
Bunch e Pat Garret e Billy The Kid. Era o prenúncio
do fim desse gênero, ao menos da forma como havia encontrado
o auge de sua realização nos filmes de John Ford,
Anthony Mann, Raoul Walsh, Michael Curtiz, Howard Hawks, entre
outros. Hathaway, entretanto, parecia fazer um retorno aos primórdios
do gênero, inspirado pelos primeiros faroestes de John Ford,
pelas aventuras descontraídas de Willian Wellman e de Henry
King, evitando o tom crepuscular, trágico e psicológico
dos filmes que sucederam essa primeira fase, e optando por uma
abordagem mais leve, solar, ingênua, cujos conflitos eram
reduzidos em prol de um humor inofensivo, de camaradagem, e personagens
unidimensionais, caricaturas da sociedade norte-americana da época.
Os
Coen, por sua vez, se filiam muito mais à visceralidade
psicológica dos faroestes de Anthony Mann do que a esse
outro heróico filme de Henry Hathaway. Questões
caras ao cinema de Mann encontram aqui um ponto de convergência
com a obra dos Coen. Há uma sequência em especial
nesse sentido: logo no início, quando Cogburn é
julgado e tenta se justificar por ter assassinado dois irmãos
foragidos da lei atirando pelas costas, sem chance de defesa para
os adversários e ainda torturando um deles até a
morte. É algo que lembra bastante o início de O
Homem dos Olhos Frios, quando o caçador de recompensas
"Morg" Hickman é confrontado pelos poderosos
da cidade ao trazer um foragido da lei morto no lombo de seu cavalo,
enquanto espera pelo pagamento de sua recompensa. A cidade não
vê com bons olhos esses assassinos caçadores de recompensas,
os tempos agora são outros. Para a sociedade, são
eles a personificação da selvageria, da brutalidade.
Esse embate entre o homem civilizado e o homem selvagem é
ponto chave do cinema de Mann, e para os Coen não é
diferente: Cogburn e La Beouf (Matt Damon) representam esse contraponto,
assim como acontecia com o capitão humanista Glenn Riordan
(Guy Madison) e o pistoleiro Jed Cooper de O Tirano da Fronteira,
ou o xerife Ben Owens (Anthony Perkins) e o já citado caçador
de recompensas Hickman de O Homem dos Olhos Frios.
O novo Bravura Indômita, com sua fotografia soturna,
obscurecida, releitura do preto e branco melancólico de
antigamente, lida exatamente com esses personagens ambíguos,
cujas motivações nunca serão efetivamente
reveladas. No caso de Rooster Cogburn - ex-xerife, lenda decadente
do velho oeste, que assume seus desvios morais sem mea
culpa - não saberemos de suas reais intensões
quando ele aceita a proposta de Mattie Ross (Hailee Steinfield),
que quer a todo custo capturar Tom Channey (Josh Brolin), o assassino
de seu pai, para ser condenado e enforcado na praça pública
de sua cidade. O mesmo acontece com o texas ranger La Beouf,
personificação do herói americano, jovem
destemido que chega à cidade em busca do mesmo Tom Channey
que agora havia matado o cachorro de um senador texano. A ambiguidade
do personagem vivido por Matt Damon já é revelada
em sua primeira sequência, quando ele observa longamente
a garota Mattie dormindo. La Beouf se sente desafiado, coagido
por aquela garota teimosa e determinada de pouco mais de 14 anos.
É o início de uma tensão sexual que será
sutilmente explorada pelos Coen ao longo do filme e que terá
ainda "o galo" Cogburn, rei do terreiro, como terceiro
viés desse triângulo.
Essa
opção pela sugestão ocorre menos por um certo
puritanismo do que por uma necessidade de se filiar a um cinema
de outrora, quando temas tabus, polêmicos, eram representados
da maneira mais sutil (e sugestiva) possível evitando uma
confrontação mais direta com o púlico que
frequentava os cinemas da época. E quem, senão o
Anthony Mann de um filme como O Pequeno Rincão de Deus
(foto), para trabalhar um sem número de tabus, apenas
sugerindo uma série de questões, sem jamais colocá-las
no centro de seu filme? Os Coen - assim como Mann - fazem um cinema
de insinuações, que se dá pela simplicidade
dos planos, dos enquadramentos, dos personagens. Um mero close
no rosto de Jeff Bridges consegue dar conta de uma série
de implicações e nuances que parecem escondidas
em sua barba extensa e em seu tapa-olho. De Mann, podemos achar
ainda a presença dos planos abertos, complexos e refinados.
Mas há também John Ford e seus enquadramentos magistralmente
simples, o extra-campo, o quadro dentro do quadro. Os Coen utilizam
essas referências ao longo de todo filme, mesclando-as ao
seu estilo próprio, buscando uma homogeneidade de formas
através da montagem, com seus fade-outs e suas fusões
enigmáticas que sobrepõem imagens e sentimentos.
Por fim, é bastante visível a maneira como a comédia
se instala dentro do filme. Não se trata do pastiche cômico
presente no filme de Hathaway; nem mesmo do humor negro corrosivo
que fez tanto a fama dos Coen. Anthony Mann, famoso por dirigir
comediantes nos anos 40, sabia como poucos retirar o melhor de
seus atores, extraindo deles um senso de humor ao mesmo tempo
natural e desconcertante. Por isso, a comédia surge em
seus faroestes não como alívio cômico, mas
como consequência, como reflexo dos personagens. Da mesma
forma, nesse Bravura Indômita, o humor surge despretensioso,
intempestivo, trivial. Com exceção da cena em que
Rooster e Mattie se deparam com um caçador vestido de urso,
única sequência de humor genuinamente coeniana,
todo o resto parece surgir naturalmente como reflexo da ação
e dos personagens.
Os
Coen, portanto, sem se distanciar da obra escrita por Charles Portis
pela qual o filme se baseia, reconstroem um certo western americano,
muito mais fincado nas raízes do gênero - diferente
do revisionismo crítico de Os Imperdoáveis,
por exemplo; ou das releituras existenciais dos recentes A Proposta
de John Hillcoat ou de O Assassinato de Jesse James de
Andrew Dominik. Os Coen não querem atualizar o western,
mas sim recolocar em cena, em sua essência, esse que já
foi um dos mais populares gêneros do cinema. Bravura Indômita
é a tentativa de reaproximar o grande público
dessa arte cinematográfica bastante renegada e esquecida.
Nessa ânsia, inegavelmente os irmãos saíram
vitoriosos: ao ressuscitarem o western, fizeram também a
melhor bilheteria de toda a sua carreira.
Abril de 2011
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