emulando
Irrupção
da tragédia
por Luiz Soares Júnior
Manila Nas Garras de Neón
(Maynila: sa mga kuko ng liwanag),
de Lino Brocka (Filipinas, 1975)
“- Mas enfim, por que
você vai ao cinema?
- Sei lá! Ou melhor, eu acho que sei
sim: eu vou ao cinema para ver este mundo e este tempo que contemplaram
nossa infância.
- Isto é tudo?
- Não! Quem jamais disse que o começo do mundo equivalia à totalidade
do mundo?”
Jean-Louis Schefer, L’homme ordinaire du cinéma
“(...) a imagem da felicidade é inseparável da
imagem da redenção. A mesma coisa se aplica à imagem do passado,
de que se ocupa a História. O passado é marcado por um índice
secreto, que o remete à redenção. Não ouvimos em nós mesmos o
frágil sopro de ar, com o qual viviam os homens de ontem? As vozes
às quais escutamos não nos trazem um eco de vozes agora extintas?
(...) Se é assim, então existe um encontro secreto marcado entre
as gerações passadas e a nossa. Esperavam por nós na terra. “
Walter Benjamin, Sobre o conceito de História.
A
abertura de Manila nas Garras de Neón constitui uma cartografia
fantasmagórica: fachadas e becos de uma cidade que desperta, ainda
envolta nas trevas da noite, entulhada pelos destroços da miséria.
Um burgo decadente de comércio predatório que a câmera percorre
com o olho mecânico e casual de um autopsista que lança uma vista
geral sobre o mapa do corpo antes de se fixar sobre o flanco a
ser suturado: um jovem rapaz, em um plano médio frontal, chama
a atenção do olho vigilante – e basta a câmera deter-se com atenção,
basta apercebermo-nos, através do foco diretivo da câmera, que
ele está presente para que o filme nasça, que as cores
aflorem. E com elas a ficção: o imaginário de um porvir, um conto
por desabrochar; de um documentário monocromático sobre uma cidade
depredada entramos no mundo turvo e espectral do melodrama.
É ao fantasma que habita este jovem operário que
o filme vai dedicar sua transparência epifânica, a suspensão do
espaço aterrador da cidade numa clareira de quietude e langor,
a reserva de onirismo e utopia que o filme de Brocka vai identificar
com a infância, a terra natal e sobretudo com o passado: Ligaya
Paraíso, a namorada prostituída que Julio, tal como Orfeu, vai
buscar no limbo do Hades. A montagem abrupta e acidentada de Manila
nas Garras de Neón se assemelha, em seus propósitos de apresentar
a experiência perceptiva da cidade como uma arena de trauma e
expiação, ao “rough cut” paranóico da recriação de M,
dirigida por Joseph Losey; porém, ao contrário do rato acossado,
maníaco-depressivo do filme de Losey, fixado definitivamente nas
malhas de um labirinto cujo dead line o espreita desde
o primeiro plano, Julio encontra no filme de Brocka um lugar para
o seu passado soterrado. Através do uso de flashbacks,
da câmera lenta, do fade in em certas seqüências, temos
acesso a uma espécie de memorial afetivo do personagem, um pathos
que resiste ao naufrágio de tudo o que o circunda.
Se a sequência final de Manila nas Garras de
Neón é uma das mais sombriamente agônicas da história do cinema
– com sua saraivada de campos e contracampos num crescendo de
terror en sursis e apocalipse eletrodinâmico que em nada
deixa a dever ao apogeu do cinema do corpo em Siegel ou Fulci
– é porque assinala a intersecção de dois momentos; primeiro,
a entrada do melodrama no domínio do trágico – com a decisão final
de Julio, que o perde e o salva em um único movimento – pois,
como bem nos ensina Jean Pierre Vernant, “a tragédia apresenta
o homem na situação de agir, face a uma decisão que implica todo
o seu destino; ele vai escolher o que lhe parece melhor, mas ao
fazer esta escolha ele estará necessariamente destruindo a si
mesmo, pois seu ato – seu pequeno ato – vai adquirir um sentido
totalmente diferente do que ele havia imaginado e voltará contra
ele num efeito bumerangue. Este homem, que acreditava fazer o
bem, vai aparecer aos olhos dos outros como um monstro ou um criminoso.
Há uma ilusão em se acreditar que o homem é senhor dos seus atos,
diz-nos o trágico.”
Assim,
se na maior parte do filme Julio recorda e espera, a partir do instante em que reencontra
Lygaia ele é obrigado a agir. O limbo amniótico do devaneio
melodramático é substituído pelo presente absoluto da ação
trágica: a intensidade naturalista do clímax final mostra-nos
a urgência deste apelo, e que Julio aprendeu as regras do jogo
predatório de Manila, e se serve ativamente dele; agora encarna
outro papel: de cordeiro sacrificado transforma-se em herói de
seu destino, ou anjo vingador. Figuras apocalípticas e/ou redentoras,
experiência dos limites e limites da experiência, o ato final
e transcendente: dadas todas as cartadas num único e certeiro
golpe, resta ao apostador o espetáculo de sua própria imolação.
Mas há um segundo momento, como disse acima. É
este que permite a Julio e Lygaia uma derradeira chance, a de
inscreverem-se miticamente no espaço do filme, não como
mero bedéis de um Destino selvagem ou lances de uma partida determinista
– como é o caso do M de Losey, aliás. No limiar deste instante
de consumação, temos a visão de uma Fatale Beauté, ou de
uma Fata Morgana, miragem da hora da Morte ou Plenitude do Ocaso
como Reencontro com as Origens: um close de Lygaia, não por acaso
introduzido por um fade in superposto ao rosto aterrorizado
de Julio. Sacrifício e Redenção, Fim e Princípio, o círculo trágico
da reconciliação. O plano que encerra o filme, e nos deixa ancorados
no território (acessível apenas às crianças e aos contos de fadas)
do presente Eterno, ou da presença que se incrusta no presente
de uma imagem icônica, e assim adquire o direito à Eternidade.
Jean Louis Schefer faz uma observação significativa: “(...) Assim,
a duração das paixões (o que Kierkegaard chamava o caráter de
um homem alternativo) pode apenas ser mensurada pelos vestígios
das imagens – não em sua duração cinematográfica, mas pelo poder
de que estão investidas em permanecer, repetir-se ou recorrerem.
Este caráter é muito próximo do que define a transformação da
imagem em um duplo mimético- ou seja, naquela espécie de traço
ou garantia de registro que é intrínseco ao movimento de desaparecimento
ou de desvanecimento do fenômeno”.
A morte de Julio libera a imagem-fantasma de sua
namorada, até então prisioneira de sua experiência subjetiva,
e como ela sujeita aos esbarrões e desníveis de um itinerário
que, em sua progressão em direção à realização (o encontro com
a mulher), encontra infalivelmente o caminho da Queda. O platonismo
de Brocka exige o sacrifício do casal para que estes possam ser
eternizados no domínio puramente virtual e idealista das imagens,
refúgio da infância. Só assim poder-se-ia realizar o mito romântico
de que Kierkegaard detém a formula célebre: “(...) sendo o homem
consciência, é portanto o lugar onde o tempo e a eternidade se
encontram perpetuamente em contato, onde o eterno irrompe no temporal”.
É
na porosidade da imagem-efígie de Ligaya Paraíso que estas duas
dimensões se esposam e fecundam mutuamente (ou se canibalizam):
uma pátina de Eterno à decadência, um corpo – e seu arsenal de
gestos e retrações – à Eternidade. O fetichismo da imagem inefável,
e do mundo edênico que esta pressupõe, em Brocka só é possível
a partir de um aprofundamento radical da imanência: corrupção,
prostituição, balé de Eros e Thanatos. A cidade é o demiurgo desta
estratégia irônica – tragicamente irônica, ironicamente trágica
– que consiste em vislumbrar a redenção apenas sob o prisma da
danação. Insiang, Tinimbang, Makliusap (um
filme curioso, com um argumento muito semelhante à Marquesa
d’O de Rohmer/Kleist), Cain e Abel... muitos filmes
de Brocka descrevem paixões de uma mitologia romântica e cristã
que aspira à conciliação de uma impossível unidade: a família
e o Eros individual, a Inocência e a Corrupção, o Campo e a Cidade,
as Origens e o Devir.
Manila nas Garras de Neón
é provavelmente sua obra-prima por operar no interior destas oposições
um deslocamento sutil mas decisivo: o trágico não é apenas o princípio
arquetípico do aniquilamento do indivíduo, obstáculo à reconciliação
cósmica; em sua contemplação se inscreve também uma imagem que,
diferida pelo horizonte da rememoração, é a fonte eterna(finita)mente
renovável de fascinação elegíaca.
Fevereiro de 2011
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