in loco - cobertura dos festivais

Maksuara – Crepúsculo dos Deuses,
de Neville D’Almeida e Tamur Aimara (Brasil, 2007)
por Paulo Santos Lima

Serras da ordem

Não há como assistir Maksuara - Crepúsculo dos Deuses sem rememorar Serras da Desordem. Pelo tema indígena presente em ambos, certamente, mas sobretudo por um registro que passeia entre o documental e a ficção, tomando preciosa atenção para o dramático da cena. Mas o que no longa de Andrea Tonacci instala-se numa área gravitacional que embaralha esses registros criando uma nova encenação (algo aliás jamais visto, e bastante genial), em Maksuara apresenta-se mais comportado, com os dois registros mais delimitados. Talvez porque toda a encenação deste filme de Neville D’Almeida e Tamur Aimara recaia numa questão que, mesmo estando na diegese, é de uma importância extrafílmica: o meio ambiente e o medonho processo de aculturação do povo indígena. O resultado, assim, é modesto em relação à obra-prima de Tonacci, ainda que Maksuara contenha algumas seqüências formidáveis.

No longa, a ficção presta serviço ao documental, o que não iguala os registros, mas sim cria uma certa instabilidade (interessante) – ainda que bastante segura para quem assiste, pois consegue-se identificar em que instância o filme está. Temos, nessa distinção de registros, a priori, uma introdução informativa sobre a morte da cultura indígena e a localização do espaço da ação, a aldeia aukre, da nação kaiapó, no meio da floresta amazônica no Pará, com vários planos observacionais mostrando os índios em seus afazeres banais, entre danças, jogos, manufatura de objetos, portando colares com a mesma recorrência que possuem um grande relógio no pulso, por exemplo (ou seja, nessas imagens, temos uma comunidade em processo de aculturação, mas resistindo). Pelo que portam de beleza e concisão, essas imagens iniciais são a melhor coisa do filme, pelas escolhas dos dois diretores, que filmam igualmente homens e araras, dando-lhes a mesma significância no filme. Ou o belo plano mostrando Maksuara, o protagonista, interagindo com um “tapete” de borboletas na beira do rio, ambos em comunhão biológica e visual dentro do plano.

Será Maksuara, inclusive, que causará a única e boa faísca no longa, pois quando ele aparece em cena, num daqueles planos observacionais, cria-se a suspeita de que ali havia uma tremenda encenação. Será através dessa performance dramática, sobretudo, que Maksuara partirá para o mundo civilizado a fim de trazer ao conhecimento dos seus o que acontece no lado de lá (ou de cá). A partir daí, ainda que o talento de Neville, auxiliado por Tamur (que foi seu assistente de direção em alguns filmes e opera a câmera neste aqui), contribua para momentos bastante inspirados – Maksuara mergulhando numa praia no litoral fluminense e, pela poluição das águas, saindo dali agonizando e, quase literalmente, derretendo, como nos faz crer a areia que o cobre –, o filme envereda por um certo classicismo na forma do discurso. Assim, Maksuara, que realizou ineditamente e muito bem uma atuação quase in natura (deixemos de lado a apropriação magnífica que Tonacci faz do seu índio bressoniano em Serras da Desordem), passa a discursar para a natureza, em plena Mata Atlântica, falando com o grande deus encarnado numa árvore centenária, sobre o homem não poder destruir aquilo que deus (ou Deus?) criou etc.

Baseando-se na filmografia de Neville D’Almeida, está claro que essa quase elegia ao deus criador do mundo faz parte dos índios, ou seja, o filme está junto aos seus personagens, respeitando-lhes e dando-lhes espaço total. E, certamente, esse respeito e valorização sagrada aos índios torna todo o discurso do filme um tanto reiterativo, ou preso a uma forma mais direta, o que acaba roubando de Maksuara – Crepúsculo dos Deuses algum encanto transcendental surgido na costura dos planos. Talvez por isso, ainda que surjam como inserções quase cartelares, os momentos em que Maksuara transa com uma belíssima índia atlântica, quando ele é crucificado por homens engravatados ou quando está naquela cena inicial já comentada aqui quando ele exerce seu lado ator na aldeia são trechos bastante “Neville D’Almeida”, ou seja, de um despudor na construção e conteúdo da imagem que acaba transtornando o tom formal adotado para falar de assunto tão grave, este da matança de uma cultura.

Novembro de 2008

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