O Maior Amor do Mundo, de Carlos Diegues
(Brasil, 2006)
por Eduardo Valente
Cacá em tom solene
Poderia-se dizer que, desde os primeiros planos
de Ganga Zumba (seu primeiro longa), Cacá Diegues tem feito
o mesmo filme. Basta ver que há dois anos eu escrevi na Contracampo
um texto
sobre sua obra, a partir de uma retrospectiva, e é
impressionante como cada linha poderia ser transplantada para
um texto sobre este novo filme. Só que, naquilo que O
Maior Amor do Mundo repete de todos os filmes de Cacá, ele
o faz em tom maior, solene, quase “final”. Assim, os ecos dos
filmes anteriores do diretor surgem quase sempre como a repetição
de cenas e motivos preparatórios anteriores, como as que um diretor
geralmente usa no clímax de um filme.
Como já era o caso com Orfeu e Deus
é Brasileiro (filmes dos quais este novo filme pode ser considerado
um irmão gêmeo mais melancólico), pode-se chamar O Maior Amor
do Mundo de qualquer coisa, menos de um filme despretensioso.
Claramente é um filme no qual Cacá Diegues depositou considerável
dose de tempo, emoção e pensamento, o que ajuda a entender tanto
a sua defesa de projeto publicada no Globo no dia da estréia do
filme, quanto a curiosa campanha que o filme fez junto aos críticos,
no sentido de ressaltar a importância que estes teriam para o
filme. Cacá sabia que, ao contrário do humor “bonito” de Deus
é Brasileiro ou da ópera-carnavalesca de Orfeu, aqui
o terreno percorrido não poderia contar só com a sua popularidade
natural com o público. Com todo o peso que ele coloca em cada
fotograma, Cacá parece afirmar que deseja fazer um filme importante
– para ele, pessoalmente, mas para o Brasil também.
Basta ver a maneira como ele escolhe como pontos nevrálgicos na
trajetória pessoal de seu protagonista, nada mais, nada menos,
que a derrota brasileira na Copa de 50 (que serve de ponto de
ligação com um dos clímaxes do filme) e a ditadura militar. Para
além da onipresença destes momentos no subconsciente histórico
nacional, eles servem com perfeição aos fins didatizantes com
que Cacá sempre constrói seus filmes – didatizantes, como eu dizia
no texto em Contracampo, não só num sentido pedagógico, mas principalmente
na transparência da narrativa. O uso da narrativa com constantes
flashbacks busca deixar cada pedacinho da colcha de significados
devidamente claro, cristalino – tanto assim que parece especialmente
inadequado para um cineasta com as suas características que Cacá
pareça buscar uma “revelação final” sobre a personagem da mãe,
quando todo seu didatismo visual-narrativo já antecipou esta “surpresa”
desde a primeira aparição dela. Em O Maior Amor do Mundo,
entendemos a “função” de cada personagem no filme no mesmo segundo
que eles entram em cena.
Assim,
não basta que José Wilker interprete um astrofísico para que entendamos
que trata-se de um homem cujos interesses estão bem longe da “Terra”
que o cerca. Ele precisa interpretar um astrofísico que não presta
atenção na linda coleguinha-assistente apaixonada que está ao
seu lado; um astrofísico que não comparece ao enterro da mãe porque
tinha um compromisso importante; um astrofísico que não se envolve
com os colegas que lutam contra a ditadura militar; um astrofísico...
Bem, deu para entender, não é? Em filmes de Cacá, há sempre frases
que pesam uma tonelada (“eu não acredito em Deus”, “isso aqui
não era como é hoje”, “a ditadura militar está com os dias contados,
companheiro”, etc), e mesmo os menores “atos falhos” (“a minha
ID, digo minha identidade”; os erros de português no cartaz da
casa da vidente) super-significam, parecem remeter sempre ao momento
em que são pensados-escritos. Por conta disso, sopros de ar que
o filme encontra (como a figura de Thais Araújo) logo são deixados
de lado. Ela “cumpre sua função”, e pronto, o filme se livra dela.
E, sob o peso da super-significação, o filme vai sendo enterrado
aos poucos.
E é curioso que se fale em enterro porque é isso
que o filme é, no fundo: a longa procissão de despedida de um
personagem, personagem que é também (pois em Cacá uma rosa nunca
é só uma rosa) a sua geração. E neste balanço sócio-geracional,
impressionam os ecos tanto de Brasília 18%, de Nelson Pereira
dos Santos, quanto de O Príncipe, de Ugo Giorgetti. Todos
e cada um deles, nos seus estilos e interesses pessoais, tratam
de uma volta ao Brasil. Volta onde o personagem vagará como um
zumbi pela contemporaneidade, entre deslocado, chocado, entristecido,
repelido, curioso. Entre eles, Cacá talvez seja o que mais incorpora
o “zumbi” na interpretação de seu ator principal – no entanto,
claro, não basta a Wilker parecer um morto-vivo, ele precisa “intepretar”
um morto-vivo em cada cena, em cada plano, de novo afogando em
super-significação o que deveria ser “metáfora”. Cacá tem “tanto”
para dizer que simplesmente não consegue terminar o filme: sucede
clímax atrás de clímax, tentando explorar toda e qualquer possibilidade
poética e sociológica de significados (onde surge uma curiosa
seqüência de nascimento que remete ao cinema de Humberto Mauro
– matriz cinema-novista por excelência).
É
fato que, desde sempre, Cacá foi o representante da geração cinema-novista
que foi incorporando com mais avidez ao seu cinema os ecos do
seu entorno. Não por acaso ele cita Hou Hsiao-hsien no seu artigo
publicado em O Globo: seu filme parece querer, nos grãos e cores
da fotografia ou nos cortes em tempos fortes da montagem, exalar
contemporaneidade. Cacá quer falar “a língua da juventude” – tanto
que as letras dos raps cantados pelo personagem do menino
são escritas por ele. Mas há um claro deslocamento: o simples
fato daquele menino cantar aqueles raps, daquela maneira,
nos distanciam dele. Assim, uma parte do filme que busca se inserir
com naturalismo no presente (não sem poesia, claro), acaba nos
distanciando dele. E é por isso que Orfeu, no seu artificialismo,
continua me parecendo o mais bem sucedido exemplar recente do
cinema de Cacá – onde o seu “mergulho no presente” vem abertamente
filtrado pela chave da ópera.
Ao fim e ao cabo, feitas todas as observações,
o que fica é o mesmo olhar de Cacá sobre a realidade brasileira,
que parece apenas “mudar” (ou se adaptar aos novos tempos) para
permanecer o mesmo: a classe média intelectualizada e distante
que tenta uma aproximação com o “povo”; “povo” este que surge
como receptáculo de uma beleza pura, original (só com mulheres
do povo pode-se viver o verdadeiro amor), ainda que degradada
pelos maus-tratos do descaso para com eles; e, finalmente, a possibilidade/necessidade
darcyniana da continuidade/permanência através da mestiçagem.
A esta visão consolidada, soma-se uma homenagem/velório melancólicos
de uma geração que, ou morreu por um sonho, ou distanciou-se muito
dele (e aqui cabe pensar o que o filme tem de auto-reflexão de
Cacá como “sobrevivente” do Cinema Novo). O que O Maior Amor
do Mundo tenta afirmar, nesta perspectiva, é que, entre Glauber
e Jabor, Cacá parece se propor como a “terceira via” - aquela
que não quer se desligar da contemporaneidade (no cinema nem na
vida), nem “esquecer o que escreveu”. E assim busca se conectar
(conectar seus conceitos e seu cinema) ao hoje. Como resultado,
nasce um filme-sintoma: interessante sem dúvida – mas, muito mais
como sintoma do que como filme. O que, de novo, é algo
típico do cinema de Cacá.
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