Luz nas Trevas - A Volta
do Luz Vermelha,
de Helena Ignez e Ícaro Martins (Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Choques
de época
Antes mesmo de
começar a projeção, não é difícil
intuir com que tipo de problemas Luz nas Trevas (e quem
o assiste) terá de lidar. Continuação de
um dos clássicos maiores do cinema brasileiro - O Bandido
da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla - o filme nasce
do próprio desafio de levar adiante e, ao mesmo tempo,
atualizar a inquietação aguda do filme original,
mais de quarenta anos depois. Qualquer crítica que parta,
portanto, da emulação de estilo e da referencialidade
ao Bandido original estaria a questionar a motivação
do próprio filme. Embora isto nada tenha de ilegítimo,
mais interessante é ver o que Luz nas Trevas evidencia
em seus momentos mais fortes e em suas evidentes fragilidades,
a despeito de uma emulação e referencialidade que
lhe são essenciais.
Em primeiro lugar, há de se admitir uma mudança
de estatuto de O Bandido da Luz Vermelha e suas proposições
estéticas, políticas e culturais ao longo dos anos.
Pois o que Luz nas Trevas torna cristalino é justamente
o quanto o filme de Sganzerla - a princípio, um filme da
contracultura, do esculacho - foi assimilado pelo imaginário
audiovisual brasileiro. Pois quando vemos esse universo emulado,
com integridade e capricho, no filme de Helena Ignez e Ícaro
Martins, percebemos o quanto há do espírito de Sganzerla
na televisão e na cultura popular atual, seja no visual
de um programa como Hermes & Renato, nos momentos
de irreverência sem freios de um Pânico na TV,
ou mesmo - como bem observou Daniel Caetano em um debate na Mostra
de Tiradentes - nas personagens espontâneas de um filme
como Pacific, de Marcelo Pedroso (não exatamente
um filme popular, mas definitivamente um filme de populares).
Por mais que essas derivações tenham problemas particulares,
elas evidenciam o quanto a lógica operativa do deboche
e da esculhambação do filme seminal de Sganzerla
se tornou corriqueira na cultura brasileira. A contracultura deixou
de ser contra, e o esculacho - com todos os seus choques - se
tornou um comportamento comum, cujas manifestações
de repulsa mais gritantes (lembremos das "Sandálias
da Humildade", quadro de linchamento via constrangimento
do Pânico na TV) são publicamente achincalhados.
Por
conta disso, a despeito de a referencialidade fazer sentido como
projeto, é inevitável que um tanto dessa emulação
nos chegue, hoje, com a polaridade invertida. Muito como Mojica
em Encarnação do Demônio, Helena
Ignez e Ícaro Martins têm em mãos contenda
semelhante à das adaptações literárias
para o cinema: como transpor determinado universo a novas restrições
históricas e conjunturais de maneira que seu espírito
seja conservado? O maior desafio de Luz nas Trevas é
justamente perceber o quanto de diluição seu plano
de choque sofreu com o tempo (pensemos, novamente, na diferença
do Zé do Caixão de 1964 para o de 2008), para então
buscar maneira de reavivá-los. O mais surpreendente, porém,
não é que na maior parte do filme isso esteja longe
do alcance, mas sim que esses momentos de fulgor existem. Seja
pelos acertos de casting (de Thunderbird como repórter
chanchadesco de TV à afetação nada dissimulada
de Ney Matogrosso como a nova encarnação do Bandido
- escancarada na bela cena final), ou por decisões muito
acertadas de mise en scène (enquadramento, tempo
de cena, precisão no corte), Luz nas Trevas tem
arroubos constantes, mesmo que breves, de força e instabilidade
- palavras essenciais para o cinema de Sganzerla.
Ainda assim, apesar de esses choques pontuais conservarem a atenção
à imprevisibilidade do filme de Helena Ignez e Ícaro
Martins, é inevitável que uma dificuldade estrutural
maior tire um tanto considerável da força do filme.
Pois O Bandido da Luz Vermelha era, pra todos os efeitos,
um retalhão de paródias que
iam do noticiário policial ao filme de gênero, passando
pela chanchada, as histórias em quadrinho e a cultura pop.
E o fato de todos esses retalhos reaparecerem ipsis litteris
em Luz nas Trevas - com um estranho sabor vintage
- leva o filme a uma esquina um tanto ingrata: fazer a paródia
da paródia. Essa inversão tira da maior parte de
Luz nas Trevas um dos traços mais marcantes do
Bandido: a impressão de que o material sensível
não resiste à força do filme, e que vemos,
na verdade, uma montagem precária de restos de negativos,
como no Othello de Orson Welles ou no Pialat de Loulou
e A Nossos Amores. Pois se a conjuntura mudou -
se não há mais Cinema Novo, projeto político
ou ordem estabelecida a se avacalhar - o olhar fragmentador de
Sganzerla está hoje distorcido nos videoclipes, na publicidade,
nas novelas. E por mais que essa decantação, que
vai das margens para o centro, marque uma vitória improvável
do bandido (o que faz de O Bandido da Luz Vermelha um
filme estranhamente profético), os mesmos planos curtos,
a mesma montagem de choque, a mesma vertiginosa abrupção
parecem hoje extremamente confortáveis, seguras e incapazes
de produzir fagulhas mais significativas de uma curiosidade constante,
mas um encanto intermitente.
Setembro
de 2010
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