Do Luto à Luta, de Evaldo Mocarzel (Brasil, 2005)
por Leonardo Mecchi

A luta através da imagem

Do Luto à Luta é um filme que, desde o início, enfrentava várias possíveis armadilhas pela frente: um documentário sobre a Síndrome de Down, financiado pelo Programa Avançado de Assistência e Tratamento a Pessoas Especiais da Petrobrás, e realizado por um diretor com uma relação extremamente pessoal com o tema. Mas, Evaldo Mocarzel soube construir seu filme de maneira a não só evitar as armadilhas (entre as quais tornar-se piegas ou institucional são apenas as mais claras), como se tornar ainda um olhar extremamente interessante sobre o tema.

O documentário se estrutura de maneira relativamente simples. No início, as entrevistas são focadas nos pais de crianças com Down, com especial atenção à reação destes à notícia da disfunção no momento do nascimento. Busca-se aqui um retrato do desconhecimento de todos (inclusive dos médicos) sobre a doença, e de como esse desconhecimento traz consigo toda uma carga de preconceitos e medos. A partir dessa espécie de introdução, o documentário muda seu foco para os próprios portadores da doença, retratando-os nas mais diversas situações de modo a suplantar a imagem dos portadores como pessoas limitadas e dependentes. Curiosamente, não há nenhum depoimento de médicos ou agentes da área da saúde: não interessa a Mocarzel o caráter técnico da doença, mas sim a relação pessoal de cada indivíduo afetado por ela.

O filme começa com um teatro de máscaras, artifício que serve para expor logo de cara a principal problemática que Mocarzel deseja tratar neste documentário: o preconceito. Como todos os personagens em cena estão com seus rostos cobertos, não há como diferenciar aqueles que sofrem de Síndrome de Down. Ao substituir uma “máscara” (a fisionomia que tão prontamente tipifica um portador de Síndrome de Down) por outra, o diretor pretende fazer com que o espectador busque por trás de ambas a verdadeira personalidade daqueles indivíduos. O mesmo procedimento é aplicado mais à frente no filme, com um plano geral de um jogo de futebol impossibilitando a separação imediata entre aqueles que possuem Down e os “normais”.

A principal qualidade de Mocarzel foi deixar que o filme se desenrolasse em função dos depoimentos recolhidos e das experiências dos entrevistados, sem impor olhares ou observações externas a ele. Foi assim que duas características fundamentais de seu cinema (a presença do próprio diretor em seus filmes, através da voz ou da imagem, e o caráter metalingüístico da discussão da imagem e do cinema através dos temas retratados) surgem de maneira muito mais natural que de costume.

A discussão sobre imagem/cinema não surge através de uma intervenção externa do diretor (como era o caso em Mensageiras da Luz – Parteiras da Amazônia), mas por ter sido trazido à tona por um dos entrevistados, que se declara fã de Spielberg e diz que seu sonho seria dirigir um filme. Diante desse depoimento, Mocarzel disponibiliza sua equipe e equipamento, e se retira, deixando ao entrevistado a responsabilidade de dirigir uma cena de ficção. A situação se presta tanto para a pesquisa contínua do diretor sobre a imagem e seu impacto na vida das pessoas, quanto para comprovar a tese principal de seu filme, a de que uma pessoa com Síndrome de Down é capaz de realizar qualquer tipo de atividade.

Da mesma forma, Mocarzel só entra em cena quando um dos entrevistados toma a câmera em punho e, apontando-a para o diretor, questiona: “Por que você está fazendo esse filme?” – e assim não é o diretor que se coloca no filme, mas o filme que o traz para dentro dele. O próprio filme responde à questão colocada quando, logo em seguida, corta para a cena de uma pequena menina dançando diante da TV. A criança, descobriremos, é filha de Mocarzel, e também portadora da Síndrome de Down – e, ao mesmo tempo que seria hipócrita ocultar esta motivação pessoal do diretor, não poderia haver maneira melhor de colocar essa questão no filme.

Assim, ao optar por um retrato pessoal e carinhoso – mesmo que eventualmente restrito a um certo universo sócio-econômico –, em contraposição à frieza de um filme de utilidade pública, Evaldo Mocarzel acerta o tom e nos entrega uma obra singela e esperançosa, com a propriedade de quem não se esconde por trás de uma suposta imparcialidade.

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