Lula, o Filho do Brasil, de Fábio Barreto (Brasil, 2009)
por Francis Vogner dos Reis

Um filme do tamanho de seu projeto, não do personagem

O filme Lula, o Filho do Brasil vem aliado a um discurso extra-filme explicitado no título: o de que a história é de um filho do Brasil, um homem comum, que poderia ser a história de qualquer brasileiro. Lula, sem dúvida, tem na sua história pessoal elementos trágicos e prosaicos de qualquer brasileiro pobre, mas a diferença é que esses fatos compõem a história de um retirante que saiu de Pernambuco pra ser, em São Paulo, o maior sindicalista da história do país, fundador do maior partido de esquerda do mundo e o presidente mais popular do Brasil. De um “personagem qualquer”, um personagem bigger than life. Os fatos de sua história comum são essenciais e centrais no forjamento do mito. Foi assim com Lincoln e, sendo bastante radical na comparação, com Jesus de Nazaré. Esses personagens, sem a dimensão do homem comum, não poderiam ser extraordinários.

Por isso esse discurso que justifica o filme como um mero melodrama "não oficial" é demagogia braba. O filme é sobre a história de um presidente ainda em exercício de seu cargo, é uma história de heroísmo e louvação em um período de sua vida de heroísmo e louvação (pelo menos hoje). É um filme que acaba às vésperas da fundação do PT, porque vincular o herói ao PT não pega bem. Há um breve salto, um epílogo, que mostra a vitória em 2002, o ponto mais alto que o personagem poderia atingir. Entre 1979 e 2002, um hiato. Foge-se das contradições do homem comum. Forja-se um santo com pés de barro, o que é quase a legitimação da idéia de que as glórias do presidente estão no passado como líder de uma classe e isso por si basta, pois o presente seria constrangedor. Arthur Virgilio e Carlos Vereza assinariam embaixo.

Esses problemas são de caráter histórico, no sentido de que essa história ainda está em andamento e, se por um lado fazer um filme a essa altura soa como propaganda de governo totalitário (não que o seja), por outro lado expõe todas as contradições concentradas na figura de Lula hoje. Pega bem falar da transformação do homem comum em guerreiro vitorioso que completou uma jornada ao chegar à presidência, pega mal trabalhar a figura do poder. Não que se exija aqui um filme diferente, mais “complexo” – o projeto é esse mesmo, não tem como ser diferente. Como artesanato cinematográfico é grotesco, e todos os seus problemas estão em função de cumprir plenamente esse projeto, de não deixar vir à tona qualquer problema de percurso no tratamento da figura do herói. Um cineasta inteligente e sincero como John Ford realizou O Jovem Lincoln, sobre a juventude do presidente Abraham Lincoln. Também trabalhou o mito da formação do maior líder dos Estados Unidos a partir de um recorte específico: a juventude. Só que Ford fez o filme 74 anos depois do assassinato do presidente Lincoln: Lincoln era história, era mito para além de uma contingência do momento histórico presente (ainda que servisse diretamente a ele). E John Ford sempre criou personagens que se pareciam com gente, não personagens. O filme é uma obra-prima, John Ford era um gênio.

Lula, Filho do Brasil é de Fábio Barreto, diretor que fez O Rei do Rio e Paixão de Jacobina. Trata de um personagem do presente, um personagem que no filme não parece gente, se faz somente como um
personagem idealizado. O esforço de Lula, o filho do Brasil é transformar a vida daquele que foi oferecido ao universo como “Luiz Inácio” (“você vai se chamar Luiz Inácio”, diz no filme a mãe Glória Pires, que o acompanhou do início de sua vida pública até o calvário) em uma sucessão de eventos tristes e trágicos que forjariam o herói. Essa sucessão de eventos tenta dar conta de tudo que é simbólico, como perder o dedo em um acidente de trabalho, ganhar um diploma no SENAI, etc. No filme ele fala da necessidade de consciência de classe entre os trabalhadores, mas ele mesmo não precisou ter um processo de conscientização, tal como um Buda que escapa do conforto e vê as misérias alheias, ele foi (num esforço bem radical do diretor e roteiristas) predestinado. Lula é um catálogo de situações absolutas e essenciais que fazem o herói.

É direto, sem cerimônia. Todo o trabalho formal se parece com um melodrama ruim da década de 30, que não sabia articular o que o personagem diz com o que ele faz. Importa mais o contar a história do que, efetivamente “mostrá-la” como uma série de inter-relações que constroem um universo. Aqui, os blocos de ação têm o incômodo de ter de lidar com uma câmera, já que uma câmera precisa ter pontos de vista elementares (e muitas vezes morais) para mostrar o que deseja, mas ele se contenta em instrumentalizar a decupagem de acordo com o senso comum estético, ou seja, planos (feios) que significam coisas. É, entre outras coisas, de mau gosto. Mas como Lula, o Filho do Brasil é instrumento para outros fins que não o de fazer cinema, não pode se pedir mais do que isso, ao menos deste filme. Não é preciso se estender mais do que isso. O filme em si sequer chega a ser um problema estético que valha a pena discutir. Será lembrado como o grande mico iconográfico do período Lula.

Novembro de 2009

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