in loco - cobertura dos festivais
Low Life, de Nicolas Klotz &
Elizabeth Perceval
(França, 2011)
por Filipe Furtado
Nós,
zumbis
O jovem imigrante conta sua historia: médicos e uma máquina
estranha cientificamente buscam comprovar que seu corpo não
é o que ele sempre acreditou ser. Aquilo que ele sempre
teve como privado é exposto em alguns exames. O jovem se
sente por demais violado para desejar muito mais do que uma existência
sonâmbula, como uma espécie de zumbi vivo. Sua confissão
é a seqüência mais potente deste novo filme
de horror político do casal Nicolas Klotz e Elizabeth Perceval,
que parte de algumas questões sobre autenticidade do corpo
e espaço político (que faziam parte da sua Trilogia
dos Tempos Modernos), e as extrapolam dentro da lógica
perversa da Europa contemporânea, com resultados diversos
e perturbadores.
Low Life é um filme peculiar. A aproximação
com Bresson (O Diabo Provavelmente) ou Garrel (Amantes
Constantes) que suas seqüências iniciais sugerem
é pouco frutífera: tratá-lo como um filme
romântico e/ou cínico sobre envolvimento do jovem
contemporâneo com política não nos levará
muito mais longe; vê-lo como uma polêmica sobre a
estupidez da política imigratória do governo Sorkozy
ainda é limitador. Antes de qualquer outra coisa, Low
Life é um filme de terror. Não no sentido que
os filmes de George Romero são filmes de horror ou na chave
“Pedro Costa conhece muito bem Jacques Tourneur e I
Walked with a Zombie” mas
na forma como seu sentido político não pode ser
diferenciado da sua associação com o sobrenatural.
A única forma possível para Low Life lidar
com as questões que propõe é mergulhando
no conceito de horror. Dentro de um universo de precisão
e certezas cientificas, da eficiência a qualquer custo,
nada mais justo do que o artista buscar o sobrenatural para equilibrar
as coisas. É como se, ao chegar à conclusão
lúcida de que apontavam suas câmeras para uma sociedade
de mortos vivos, o casal Klotz e Perceval não visse nenhuma
outra saída que não fosse aceitar que lidavam com
um tipo próprio de filme de horror. Não surpreende
que a grande peça de resistência política
proposta por Low Life traga justamente um grupo de imigrantes
envolvidos em cerimônias de voodoo contra autoridades. Se
somos todos zumbis, logo não há forma mais própria
de insurgir, o filme parece nos sugerir. A única forma
de driblar a lógica do Estado policial que o filme descreve
é chegar a ele pelo viés do macabro.
Para dar conta deste estado de coisas, é preciso desestabilizar
a própria lógica deste cinema. Não é
acidente que Klotz e Perceval tenham escolhido nomear Low
Life a partir de uma música do primeiro disco do Public
Image Limited. O PiL, afinal, nasceu como reação
à idéia do punk inglês como algo regressivo,
fazendo sobretudo uma música que freqüentemente buscava
limpar o rock da influência de música negra - e fez
isso imbuindo seu som com forte influência de
musica jamaicana (em particular o dub). Diante da questão
de como tratar de uma sociedade cada vez mais controlada e doentia
no seu desejo de negar o outro, busca-se uma série de elementos
muito caros ao cinema de arte francês das ultimas décadas
(as citações godardianas, a cena de rave,
a política centrada no casal à Garrel, até
mesmo o clímax com as câmeras de segurança)
para reconfigurá-las com uma embalagem agressiva de horror. Assim
como será impossível para o jovem poeta afegão
se livrar da sua carta de expulsão – uma marca que
sobrenaturalmente vai retornar às suas mãos, independente
do que fizer para se livrar dela – estes elementos todos
são reconhecíveis na sua familiaridade, mas existem
num universo próprio por demais dissonante para simplesmente
cumprirem suas funções pré- determinadas.
Quando observamos a distância entre Momo depondo de forma
esfuziante diante da justiça francesa no clímax
de Paria – primeiro filme da trilogia anterior
do casal – e a caminhada rumo ao desaparecimento de Carmem
ao fim de Low Life, vemos neste intervalo de dez anos
todo um processo da Europa contemporânea indo de mal a muito
pior. Já não é possível para o cinema
de Klotz e Perceval simplesmente confiar na presença de
cena contagiante do seu ator central como sua principal peça
política. O esgotamento final que tanto A Ferida
como A Questão Humana buscavam chega aqui num
outro estado, em que o desaparecimento ganha uma consciência
nova. Low Life resiste ali e à sua observação
amarga contrapõe-se o próprio filme. Klotz e Perceval
são por demais materialistas para buscar algo diferente.
Novembro de 2011
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