Chuva (Lluvia), de Paula Hernández
(Argentina, 2008)
por Rodrigo de Oliveira
Alguém
tem que ceder
Chove há dias em Buenos Aires,
e o trânsito está completamente engarrafado em toda a cidade, exatamente como
acontecera em Paris alguns anos atrás. Valeria Bertucelli está em dúvida sobre
seu casamento, e num impulso entulha seu carro com caixas de uma mudança que não
sabe para onde é. O carro é seu espaço de segurança, o engarrafamento e a chuva
até lhe fazem algum bem, através da janela ela consegue perceber pequenos sopros
de emoção na convivência e na interação entre pessoas que ela própria parece ter
perdido em sua vida, e tudo isso se dá exatamente como já viramos antes com Valérie
Lemercier, seu carro, suas caixas, seu olhar sobre as ruas parisienses no Vendredi
Soir de Claire Denis. Guillermo Nieto filma estas ruas e estas janelas como
poucos, talvez só como Agnès Godard fizera antes dele. E então surge um homem
misterioso, e pode ser um Ernesto Alterio aqui ou um Vincent Lindon acolá: se
ele surge, e se é misterioso, só pode ter vindo para revolucionar o espaço antes
exclusivo daquele carro (o argentino ou o francês), e por tabela a vida daquela
mulher (a argentina ou a francesa). A questão do filme de Paula Hernández não
está exatamente na impressão de um plágio desavergonhado do filme de Claire Denis
– mais que cópia, o que Lluvia parece tentar, com algum desespero e de
maneira bastante atrapalhada, é canalizar um espírito, ligar o botão de uma sensibilidade
desejável, mas específica demais para se entregar assim, numa simples reprodução
em outro contexto. É este, no fim, o grande encanto
e o grande equívoco de Lluvia: a crença de que a busca do extraordinário
numa situação vastamente dominada pela linguagem dos afetos e do cinema (o boy
meets girl e suas variações) pode ser feita através de uma “ordinarização”
dos instrumentos de abordagem. Acreditar que só é possível combater o modelo clássico
do enlace romântico transformador com o modelo do encontro lacunar, do primado
da estranheza, como se Denis filmasse como quem estabelece uma escola de novos
sentidos para velhos objetos; como se filmar o amor hoje precisasse ser, obrigatoriamente,
uma negociação entre ordinário e extraordinário, onde alguém tem que ceder. Menos
um filme que cresce e se desvenda à medida que as relações se aprofundam que um
ringue de luta franca onde cada round-seqüência é uma aposta no escuro, Lluvia
vive essa bipolaridade com uma integridade rara. Isto definitivamente não o torna
melhor (ou mesmo bom, simplesmente), mas ser íntegro é a melhor das estranhezas
que se pode desejar aqui. Também
como outro filme argentino em que chove sem parar e que, por isso mesmo, parece
se criar um mundo paralelo dentro do mundo real, ordenado pela água e pela transformação
física que isso provoca na cidade e nas pessoas – falo de A Nuvem, de Fernando
Solanas –, em Lluvia este novo estado da natureza que condiciona o espaço
urbano altera também a temporalidade. Mas se Solanas se esforçava em filmar um
tempo realmente distorcido (protegidos da chuva no interior de um teatro, os protagonistas
seguiam uma vida que caminhava para frente, enquanto do lado de fora as pessoas
literalmente andavam para trás, retroagindo, nunca avançando), a Paula Hernández
interessa o tempo do drama, a quantidade de energia que se pode extrair do presente
uma vez que o passado está encoberto e o futuro ainda não decodificado. Mas, novamente,
o filme sente que este distúrbio depende de uma negociação, de concessões necessárias,
quando tudo o que se passa entre Alma e Roberto, este casal reunido pelo acaso
e que experimenta o acaso em todo seu trajeto, quando isso é inegociável. Com
Claire Denis na memória, é curioso ver como Hernández trabalha para produzir um
tremor e uma inquietação sem nunca perceber que os elementos que ela já arregimentou
de princípio (chuva, carro, homem e mulher retirados do tempo real) oferecem matéria-prima
suficiente para que estas sensações surjam pelo simples fato de ocorrerem “coincidentemente”
no mesmo lugar, por se reunirem na mesma história. As estruturas eventualmente
se sobreporão ao que se dá no nível do chão, e toda ausência será devidamente
preenchida. É a vitória da retidão do flashback sobre o abismo da pausa.
Mas que em algum momento Lluvia tenha se dado o direito a ela, que em algum
momento tenha acreditado de fato que os jogos entre estes dois corpos deslocados
e atravessados apenas por um e outro poderiam projetar sobre o filme um mistério
real e particular, mesmo com todas as similaridades no papel com Vendredi Soir,
isso já nos faz crer que o fim da tormenta e o dia ensolarado não sejam apenas
mais uma cessão, mas sim um direito conquistado. Lutar contra uma narração em
off psicologista que coloca os pingos em todos os is e sair com poucas
escoriações disso merece, afinal de contas, um sopro de amarelo como recompensa. Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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