plantão do YouTube
Corpo em descontrole
por Eduardo Valente

Por mais que, no sentido esportivo, as Olimpíadas tenham sido bastante movimentadas (como não poderia nunca deixar de ser), no que se refere ao terreno das imagens e sons não podemos dizer o mesmo. Sim, claro, houve aquele super slow nos replays, mas se isso é a coisa mais incrível de uma cobertura, é sinal de que não houve muito. O drama ficou quase sempre restrito ao campo das competições, cabendo notar apenas o absurdo da sede de “tudo mostrar e nada olhar” das coberturas, que interrompiam constantemente jogos e competições pela metade para transmitir mais e mais competições pela metade; ou quebravam a tela em duas ou três para mostrar pior um maior número de perspectivas. Assim, se houve uma grande marca dessas Olimpíadas para o espectador mais atento foi mesmo o desejo de que logo cheguem os dias da tão propalada digitalização da TV, que coloque nos dedos dele a possibilidade de escolher que imagens quer ver e por quanto tempo.

Não deixa de ser curioso que justamente o desejo de poder controlar mais a imagem tenha sido a grande sensação deixada por Olimpíadas realizadas na China, uma vez que foram jogos sob constante tensão entre a mídia ocidental e o Governo chinês sobre a idéia do controle das imagens – por mais que ambos tentassem evitar o confronto direto seguidamente. No entanto, a cada pequena chance possível, o tema voltava, como vimos na “polêmica” sobre a menina vista cantando na abertura dos Jogos não ser a dona da voz ouvida – como se o retoque estético para realizar um espetáculo fosse uma invenção do comunismo. O que mais se viu foi o exagero de parte a parte: um Governo hiper-sensível e reativo a tudo, e uma mídia tentando atrelar qualquer acontecimento possível a um “mascaramento” oficial.

Dentro deste contexto é fácil dizer que o momento mais poderoso dos Jogos, pelo menos no que tange as imagens, foi justamente aquele onde este drama se desenrolou de forma mais escancarada, mas ao mesmo tempo absolutamente enigmática: a desistência do corredor chinês Liu Xiang nas eliminatórias dos 110m com barreiras.

Antes: construções da imagem

Antes de entendermos o porquê da força destas imagens, vale entender um pouco mais quem é Liu Xiang. Ele foi o primeiro atleta chinês a ganhar uma medalha de ouro em uma prova de velocidade no atletismo olímpico (especialidade onde tradicionalmente os países asiáticos não são fortes), nas Olimpíadas de Atenas 2004. Sendo estes os jogos que antecediam os de Pequim, ele foi transformado num verdadeiro ídolo nacional da noite para o dia. O quanto ele significava para os chineses? Basta passar o olho nessas imagens para entender:

Sua imagem era tão onipresente pelas ruas (e TVs) da Pequim pré-Olimpíadas quanto eram as de um Ronaldinho Gaúcho no Brasil (e Alemanha) em 2006. Claro que, sendo estes os tempos estranhos que são numa China pós-comunista como a de hoje, Liu Xiang não era só um esportista-modelo, mas também um ícone comercial e pop (com uma boa parte de todos os seus cachês indo para o Estado).



Desconstrução “ao vivo”

Nas vésperas do dia 18 de agosto, já havia um clima tenso de “guerra fria” de informações no ar: Liu Xiang passou os meses pré-Oimpiadas sem competir ou fazer aparições públicas, e se falava de tudo, indo de medo de concentração total e proteção das pressões (versão do Governo chinês, claro) a lesões que o impedissem de competir, passando pelas tradicionais versões mais conspiratórias (desintoxicação de doping, etc). Fato é que o que deveria ser uma simples eliminatória virou um mistério e um drama (o que, desnecessário dizer, faz um enorme bem para a audiência – seja a televisiva, seja a no local da competição que estava lotado naquela segunda). E aí começou a se desenrolar o drama em forma de imagens, que assisti ao vivo no dia, e exibo agora num formato resumido, mas bem fiel ao desenvolvimento, comentando abaixo em mais detalhes (a narração em mandarim sem legendas é de grande ajuda para nos concentrarmos nas imagens).

 

(Parêntese essencial: No dia seguinte à postagem deste texto, o vídeo acima linkado foi retirado do YouTube - e, por mais que adoremos as teorias da conspiração, não eu não acho que uma coisa tenha relação com a outra. Ou melhor, tem sim, no sentido deste ser um texto que fala de controle de imagens e justamente o texto retirado (e não dá para saber o motivo exato para isso) ser aquele que citávamos como o registro do "descontrole" nas imagens ao vivo. Decidi manter o texto como era, porque a minutagem abaixo dá conta de descrever bem as imagens, mesmo que o leitor tenha que "recriar" a ordem delas em sua cabeça. Pesquisando no YouTube achamos outros vídeos, embora nenhum com o registro completo como este acima tinha. Linko abaixo alguns dos vídeos de momentos específicos, além destes dois que são, talvez, os mais completos: este e este)

0:03 – já cedo, a primeira imagem significativa: num corredor interno do estádio, do qual nunca mais foram mostradas imagens ao longo da competição que não nesse dia, Liu Xiang surge caminhando. Note que o competidor ao seu lado tem a toalha sobre a cabeça, porque este (e isso vimos na natação ou mesmo no estádio de atletismo com a campeã do salto com vara) é um momento de concentração, de foco. Liu Xiang no entanto olha para a câmera, posicionada como uma câmera de segurança ou de Big Brother, e percebe que ela o acompanha. Ele sabe que os olhos já estão ligados nele, desde já. No aquecimento, ele parece mancar levemente, mas é capaz de realizar os movimentos.

0:18 – esta imagem me marcou muito, e o simples fato dela não ter sido comentada ao vivo nas redes de TV, nem ter voltado à cena depois, chegou a me fazer duvidar se eu tinha visto certo (viva o YouTube): Liu Xiang, à beira de entrar no estádio, chuta a parede com força considerável. Na hora, a dúvida: como alguém que estaria tentando se recuperar de uma lesão faria isso? Para “esquentar” o pé? “Espantar” a dor? O enigma desta imagem, talvez a única a que tivemos acesso quando Liu Xiang não sabia que estava sendo filmado-mostrado, para mim é tão grande quanto o enigma do ser humano mesmo: o que, afinal, motiva o gesto tão dramático?
(a imagem deste chute, isolada, está neste vídeo aqui - sua existência assim, independente, me indica que, por mais que eu não entenda mandarim, alguém também achou a imagem significativa por si mesma)

0:35 – a câmera na mão entra no estádio com Liu. Imaginem quantas vezes isso foi ensaiado! E não percam a atenção para o fato de como a imagem se foca em um único homem numa competição disputada por vários. Nada mais importa, nos diz o diretor de imagem chinês: esse é o momento da comunhão entre um herói e a nação (que surge representada pelos torcedores no fundo).
(a parte inicial da prova, anda que em câmera lenta, pode ser bem vista no segundo vídeo que vem abaixo. além dele, recomendo este aqui)

1:01-1:12 – o primeiro aquecimento na pista parece indicar que vai tudo bem, até que ele pára mancando, e sai para o lado da pista. Segura, claramente, o calcanhar direito. Dali parecem vir as dores insuportáveis. O drama é quase insustentável: numa verdadeira batalha de imagem entre uma nação fechada e orgulhosa, que briga para impressionar o mundo e suplantar os todo-poderosos reis do esporte (os americanos), este é um dos protagonistas escalados. Ele está sofrendo e como mostrar/enquadrar isso?

Dilema dos dilemas, certamente, no centro do poder chinês: a gente convidou todo mundo aqui, montou este circo todo de imagens e atletas e agora um dos nossos está “falhando” em público, frente a nossa nação e ao mundo. E, horror dos horrores: “nós não podemos fazer nada”. Não há mais controle possível: o drama é ao vivo, o drama é humano (e aí vêm todas as especulações médicas ou psicológicas, mas nestas mal sou um amador para opinar), e dentro do seu corpo não se pode entrar, cancelar o evento não é uma hipótese. Estamos todos, de repente, e pela primeira vez na história da China na recente, ao vivo no mundo todo e sem o menor controle do que se passa.

Os câmeras e diretores de imagem, claro têm a obrigação/experiência de encontrar o drama, os quadros certos: as pernas em close, os movimentos, os zoom dramáticos. A linguagem do drama audiovisual é quem manda agora. Sentar, e esperar, assistir.

1:50 – a cabeça baixa: sinal universal de derrota. O que fazer com isso? Plano aberto da torcida (um dos últimos a ser mostrados), em busca de inspiração: só se vê imobilidade, silêncio, medo. Voltemos a Liu Xiang, então.

2:10 – o que se vê aqui é um atleta claramente sem condições de participar de uma competição. No entanto (no único momento forte que esta compilação não pega), ele cola em cima da hora o seu número na coxa, sinal de que vai correr. O que motiva essa decisão? Medo de punição por desistência? Vontade pessoal de se superar? A pressão de saber que um país (e o mundo) está olhando para você? Obrigações contratuais com os patrocinadores? A situação lembra, muito, o caso de Ronaldo na final da Copa de 98 – com a diferença de que, por se dar longe das câmeras, aquele drama sempre teve algo de sobrenatural e de mistério atrelado a ele. Este se passa na frente de dezenas de câmeras e ao vivo, mas, de novo, é um enigma que a imagem, com quantas câmeras houver, não solucionará nunca.

2:35 – a largada, a parada: o resultado esperado. Só que, logo antes, como que para dar mais subsídios ao mistério, Liu Xiang segura o joelho, e dá tapas na coxa. Afinal, aonde é o problema físico (se ele existe)? O público olha para o telão – talvez com a esperança de que no replay não aconteça de novo o que aconteceu ao vivo, de que tudo seja uma grande alucinação coletiva. Ou ainda, tentando que as imagens expliquem o que é inexplicável. Liu Xiang, ele, sai de cena rapidamente. Para um certo alívio certamente do Governo chinês, que pode voltar a dominar as imagens.

3:21 – menos de uma hora depois, o técnico e o médico de Liu Xiang dão uma coletiva, num evento também único nos Jogos e que dá a dimensão de assunto de Estado: é preciso dar uma resposta para aquele público atônito (o do estádio simbolizando as centenas de milhões em casa). É preciso “explicar” o que aconteceu – mesmo que seja francamente inexplicável. Afinal, se ele estava contundido, o Governo mentiu porque havia sempre dito que não até a véspera da corrida. E além disso, mandou um herói para ser sacrificado em público. Se ele não estava, por outro lado, ele simplesmente “amarelou”? O símbolo da nação, o herói chinês, acovardou-se?
(a entrevista pode ser vista aqui)

3:33 - não há saída “limpa”, por isso o que vemos são frases protocolares, com direito a momentos de choro – tristeza? vergonha? medo? Um braço entra em quadro á esquerda do treinador e o consola. Para o público mundial, o confuso discurso do técnico e do médico se torna quase cômico na tradução da chinesa para inglês, que mal completa frases, sentidos. Tudo muito sintomático.

4:00 - como se a China inteira quisesse que ele demonstrasse força e superioridade neste momento, agora entra um braço pela direita e oferece um lenço.

4:50 – o herói caído sai de cena. Para além de todos os dramas das imagens, a força do momento é humana: o que se passa naquela cabeça? Enigma, de novo e sempre.

Depois das imagens, mais imagens

Repetindo a mão misteriosa com o lenço, secar as lágrimas é a palavra de ordem nos próximos dias. Não deixa de ser curioso: no país comunista, é preciso voltar a laudar a China, que no coletivo vence, e esquecer o herói individual. Adequado, talvez. Só que esquecer é palavra difícil nos tempos das imagens que ficam e se multiplicam, das maneiras mais inesperadas.

Do “inimigo olímpico” americano, convidado ao país, o repórter busca as “várias versões”, como manda o manual de jornalismo:



Da China, porém, apesar de vermos as opiniões divergentes, as imagens posteriores (ou as que conseguimos ver pelo menos) só concebem um choroso heroísmo dramático, onde o videoclipe é a linguagem, via de regra – seja ele da TV oficial ou caseiro (embora no segundo, curioso, a artista que canta é americana):

 

 

De novo, o controle da imagem parece voltar a ser a questão: qual imagem se deve reter do que aconteceu ali naquele dia? Fato é que nós temos aqueles minutos de imagens ao vivo para voltar e rever o espetáculo de um corpo fora de controle, de uma situação ao sabor do humano, que escapa por segundos a qualquer discurso, enquanto eles ainda se formam.

Setembro de 2008


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