Pecados Íntimos (Little Children),
de Todd Field (EUA, 2006)
por Paulo Santos Lima

Narrador, pai ou irmão

Pecados Íntimos trabalha na chave metonímica da cidadezinha que representa um todo, no caso, um sintoma dos Estados Unidos (aliás, um procedimento comum em boa parte do cinema indie). Outro fator igualmente indie é o desvendamento de um zoológico humano, entre traumas e psicopatias. Ao estilo de Beleza Americana, que também partia de uma pequena comunidade vista sob os olhos ácidos de um protagonista, temos em Pecados Íntimos uma ordem de valor mofada e, graças ao largo escopo de personagens, gerenciada por um narrador invisível e onisciente, que, acompanhado da câmera, comenta tudo com sua voz over, inclusive sob a redundância de descrever o óbvio.

E é no narrador onde estão as pistas sobre o que diabos é esse Pecados Íntimos, filme que, gostando-se ou não, parece criar uma certa suspensão de juízo – um “que filme estranho” (menos a respeito de suas qualidades estilísticas e mais sobre qual é seu jogo moral). Longe de dissertar sobre qual seria a moral e, pior, qual seria a moral correta de um filme (o que renderia laudas quilométricas de escritos), a minha idéia aqui é simplesmente arriscar em detectar um julgamento que este longa de Todd Field faz, e que parece penumbrado por uma suposta imparcialidade. Mas é justamente entre a câmera (que vê e nos mostra os acontecimentos) e a narração que surge a tal sensação de suspensão, tanto de julgamento do filme sobre os personagens quanto do ponto de vista adotado pelo filme. O narrador menos esclarece as coisas do que as conduz de lado a outro.

À história, primeiramente: Sarah (Kate Winslet), cujo marido prefere o sexo virtual internético, envolve-se com Brad (Patrick Wilson), rapaz meio sem rumo e desempregado, cuja esposa faz as vezes de homem da casa, pondo o sustento na mesa, e não lhe dá a mínima na cama, lamentavelmente (afinal, estamos falando de Jennifer Connelly). No meio disso, Ronnie (Jackie Earle Haley) sai da cadeia após cumprir dois anos por atentado ao pudor contra crianças. Seu retorno à casa da mãe é motivo de terror na comunidade, preocupada com suas crianças – crianças, aliás, a quem a câmera destina seu carinho e atenção. São os filhos de Brad e Sarah que servirão de ponte para os dois apaixonados encontrarem seus corpos: além de ferramentas, a pirralhada é a sacralidade, o ideal de pureza que deve se manter intocável; idéia que essa comunidade (ciente de seus “pecados”) cultua obsessivamente. Estamos, aqui, num espaço de controle moral extremo, e patrulhamentos contra as quebras de protocolo.

Apesar de não ter necessariamente um protagonista, Sarah é a grande figura que representa uma latente ruptura naquele medievalismo. Menos frágil que seu parceiro de alcova, ela parece carregar a bandeira progressista que se rebela contra uma direita conservadora, aqui representada por algumas mulheres e pelo amigo de Brad, Larry (Noah Emmerich, quase um George Bush). Não à toa, o narrador somente surge quando precisa falar mais sobre a incompatibilidade desta mulher mais liberal naquela comunidade na qual as dondocas patrulheiras ficam no parque a fantasiar aventuras sexuais extremas (com Brad, ideal apolíneo que entrecruza pai e amante).

Com esse grande material, o filme orquestrará imagens que jamais trabalharão na sutileza. Tanto que a melhor seqüência se dá quando Ronnie visita a piscina pública e aterroriza a horda de mamães, que puxam seus filhotinhos para fora d’água. Por outro lado, mantendo a troglodice, veremos o mesmo Ronnie ameaçando uma mulher enquanto masturba-se grotescamente no carro. Mostra-se a bizarrice com o mesmo desembaraço sensacionalista (enfático, melhor dizendo) com que se registra a bela relação entre os amantes ou uma estúpida partida de rúgbi dos policiais dos arredores.

O narrador casa-se com a câmera quando esta desnuda as disenterias — como mostrar o lado perdedor, perdido, do vigoroso Brad — e entra daí uma voz que parece conversar conosco a imagem. Mas esse é um casamento de fachada, porque existe, sim, uma soberania da narração. Essa voz, que, apesar do timbre, nada tem da irônica voz narradora de Dogville, lembra a voz do pai – não do Pai, Deus, mas sim a de um papai que todo filho gostaria de ter, condescendente com suas estripulias. Mais um grande irmão. Poderia até dizer que esse narrador responde ao caráter fabular do filme, mas David Lynch, por exemplo, constrói um espaço fabular em Veludo Azul e a única “narração” seria a da canção dourada Blue Velvet.

A narração é, portanto, outra coisa em Pecados Íntimos. Jamais irônica, tampouco alicerce narrativo (como nas fábulas políticas de Tim Burton), ela se faz um discurso paralelo à parcialidade das imagens, todas elas atreladas a julgamentos, todas elas encenações carregadas de drama. Um olhar que parece acompanhar seus personagens meio à distância, na serenidade e amizade, e que se mantém assim até o final, quando acaba por se revelar como discurso da conformidade. O narrador, quando Brad e Sarah desistem do plano (de fuga) que repercutiria na verdadeira transgressão (geográfica, inclusive) àquele espaço sitiado, mantém o mesmo tom vocal, o mesmo equilíbrio que manteve ao conversar sobre a estupidez hipócrita daquela comunidade. Nessa comunhão entre as cenas e o relato, surge uma idéia de recuperação da ordem, que estava ameaçada pelo casal revoltoso e pelo tarado. É este, aliás, quem faz Sarah pegar sua pirralhinha e voltar à segurança do lar e, de quebra, que corta, ele próprio, seu pênis, objeto simbólico tabu daquela cidade. O narrador de Pecados Íntimos é, portanto, o papai que assiste ao filho bagunceiro para, no final do dia, aliviar-se quando o mesmo espoleta termina a lição de casa, toma banho, escova os dentes e vai cedo pra cama.


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