Linha
de Passe, de Daniela Thomas e Walter Salles (Brasil, 2008) por
Cléber Eduardo
Entre a dramaturgia e a experiência Linha
de Passe é estruturado em torno de uma casa e
da convivência de uma mãe e quatro filhos (com um quinto a caminho), sem nenhum
sinal de presença paterna para além das fotos e dos mitos. Dentro de casa, eles
brigam pelo sofá, brincam com uma bola, lidam entre si com afetos e rancores,
com o peso de quem não se move na vida, embora todos se movam por toda a cidade,
pulando de uma necessidade para outra, atrás de sonhos, de redenção, da sobrevivência
– uns com mais fé em si, na vida, na capacidade de construir um caminho; outros
sem a mesma esperança e com diferentes maneiras de lidar com esse ceticismo. Um
é motoboy endividado e corre atrás de dinheiro. Outro é craque de pelada e corre
atrás de um time. Há ainda um evangélico, frentista de posto de gasolina, que
corre atrás de Deus. E o caçula, de pele mais escura, que corre atrás do pai,
um motorista, a quem procura nos ônibus da cidade. O
espaço geosocial é o da periferia paulistana com índices de carências evidentes.
Como figura materna desse núcleo familiar temos a faxineira corintiana que, mesmo
com o Timão às beiras de cair para a segunda divisão, mantém-se Fiel na
arquibancada. Uma mulher de fé, grávida da vida, que tem o emprego ameaçado, mas
não pára de acreditar. Essa mulher é do Timão, mas o Timão está desorientado.
O “timão” para a condução de uma embarcação é correlato ao “volante” para a condução
do ônibus. Essa direção, se tomarmos o Corinthians como metáfora, está em crise
(na diegese). Pois é necessário que o caçula da família aprenda a dirigir, a manejar
o timão do ônibus, para ao final conduzir-se com as próprias mãos pela vida, sem
aceitar ser apenas passageiro dela e sem ser imobilizado pela falta de um ponto
de partida (o pai ausente). É em meio a notícias sobre greves
de ônibus, emitidas pelo som da TV, que se passa essa narrativa de deslocamentos,
que é também uma narrativa de imobilidades. Importará, basicamente, se esses
personagens poderão melhorar de vida, alterar a direção do timão e dirigir seus
próprios rumos, ou se ficarão entre a estagnação e a queda completa. No entanto,
nenhuma resposta a isso, se formos rigorosos com as imagens, pode ser acionada
sem problematizações. Ou sem individualizações. Estamos mais próximos da opacidade
do desfecho de Terra Estrangeira, primeira parceria de Walter Salles com
Daniela Thomas, que da conclusão de O Primeiro Dia, a segunda parceria
da dupla de diretores. Em Terra Estrangeira, o protagonista, baleado no
carro, era conduzido para algum lugar, para lugar qualquer, sem sabermos se morreria
ou viveria. Em O Primeiro Dia, o protagonista, após um encontro afetivo
efêmero, morre. Em
Linha de Passe, não se trata mais de viver ou morrer, mas de viver ou sobreviver,
de sobreviver ou despencar, de insistir ou desistir. Trata-se, em suma, de crer.
E não é casual a presença da Fiel, nem da religião. Mas a abertura para a possibilidade
dessa fé e de uma brecha para sua realização não é igual para todos. Nem poderia.
Porque há um senso de perpectivismo social a reger a lógica de experiências únicas
do filme. Únicas e comuns. Nos momentos iniciais, vemos a mãe na arquibancada,
os fragmentos de um jogo de futebol entre São Paulo e Corinthians, mas também
vemos outros torcedores na arquibancada. Em um outro momento, enquanto um dos
personagens espera na fila de um teste para um time, vemos e ouvimos outros meninos,
na frente dele nessa fila, dizendo nome e origem, assim como a posição na qual
desejam jogar. O que une essas duas sequências é a decisão de olhar a ação central
em determinada seqüência, e também algo da geografia humana presente no entorno
dessa ação. São apenas imagens de rostos com nomes (como eram nomes com rosto
os de Central do Brasil), ambos procedimentos empenhados para sair da zona
exclusiva do indivíduo, multiplicar as faces e os nomes em seu espaço. Ser um
entre tantos. Há uma procura por uma narrativa com leitura
de si mesmo, de seu mundo de “uns entre tantos”, que se manifesta na organização
de fortes potenciais simbólicos. A perua parada no quintal da casa dos personagens,
onde o caçula brinca de dirigir, conduzindo seu destino com as próprias mãos (como
faz no plano final ao sair pela cidade de ônibus), é um dos exemplos mais marcantes,
e uma variação do navio encalhado de Terra Estrangeira. Outro é a opção
por terminar a trajetória de um dos personagens na “marca do pênalti”, como se
ali fosse decidir o destino. Assim como encerrar o filme com o som do mantra “ande,
ande, ande...” de um dos personagens Salles
e Thomas recuperam, à sua maneira, a noção de teleologia, dando um sentido final
para os percursos, que, para estarem associados, são montados em seus clímaxes
em efeito de simultaneidade: nascimento de filho, pênalti, batizado, deslocamento
e crime. As palavras-chave são os pontos de maior voltagem dramática do filme.
Tudo deságua e se conecta nas imagens finais, mesmo que sejam conexões sem conclusão.
A mão do autor não se dá o poder de interferir completamente nos rumos de seu
mundo ficcional, embora as interferências sejam facilmente notáveis. Pensemos
na conexão direta entre os planos, com uma imagem puxada por outra, como o corte
do torcedor da fiel na arquibancada para o crente no culto evangélico; ou ainda
da partida do Corinthians para os lances do teste na “peneira”. Esses
sinais explícitos de organização dos núcleos narrativos e dramáticos, nunca antes
tão amplos em filmes de Walter Salles (com ou sem Daniela Thomas), parecem empenhados
em nos lembrar da presença constante de uma instância autoral, que, apesar de
construir na imagem um mundo real por meio da ficção, faz questão de explicitar
na linguagem sua ingerência (efeito de ingerência). Isso se manifesta na maneira
de se usar a trilha sonora e de se construir o desenho de som, mas também no desenho
de luz de alguns interiores. O naturalismo dá lugar nesses momentos para um “expressivismo”
(e não expressionismo). Salles e Thomas não dão sinais de
estarem interessados em um naturalismo sem lugar para a dramaturgia e para a expressividade
audiovisual mais construída. Estão mais para realistas críticos (com leitura da
sociedade) que para realistas zavattinianos (sem leituras), mas seu realismo também
carrega algo de mítico e arquetípico, sobretudo no final, quando a fuga de ônibus
e o mantra em surto rompem com o registro realista e viram puro significado. Os
diretores não querem apenas a veracidade dos ambientes e das atuações, a verossimilhança
dos movimentos pela cidade e a autenticidade do vocabulário, preocupações essas
transformadas em bem sucedidas operações. O aparente desafio ao qual se lançam
é usar esse efeito de real para modelarem esses efeitos com disposições de dramaturgia
audiovisual.
Setembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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