ensaio
O fechamento de uma linha de fuga
por Cléber Eduardo

No fim de Central do Brasil, de Walter Salles, vemos olhos em lágrimas. Enquanto a professora aposentada expõe na imagem um sinal de seu amolecimento, mostrando ter se tornado melhor como ser humano enquanto retorna para casa (ou para sabe-se lá qual destino), também vemos as lágrimas do menino órfão reposto por ela à sua origem/família. Também ele, se não se torna melhor ao final, ao menos ficará bem, conforme sugere o filme. Há uma transformação de olhares pelos afetos surgidos na contingência, um senso de conciliação entre os corpos e emoções em choque, de contato com a realidade como experiência positiva para os personagens, de possibilidade de um futuro com algumas expectativas. Central do Brasil foi premiado com o Urso de Ouro em Berlim 1998.

No fim de Tropa de Elite, de José Padilha, vemos olhos em fúria. Em vez de mostrar lágrimas, a imagem espuma. Em vez da música de Antonio Pinto, ouvimos o som de um tiro. Um policial com planos de ser advogado, cidadão mediado pelos conhecimentos, aprende a executar criminosos. Vemos um sinal de seu endurecimento ao contato negativo com a realidade, um senso de confronto entre corpos e interesses sem possibilidade de conciliação, de impotência convertida em faxina, fechando qualquer porta de esperança na última imagem. Ninguém ficará melhor após o final. Tropa de Elite foi premiado com o Urso de Ouro em Berlim 2008.

Nesses 10 anos, ao menos no paradigma de cinema brasileiro premiado pelo festival alemão, a imagem endureceu. Também deixou de falar de pessoas para falar de um sistema de funcionamento de uma comunidade (como havíamos visto em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, cujo roteirista Bráulio Mantovani é o mesmo de Tropa de Elite). Do vínculo com o melodrama e com o road movie de descobertas em Central do Brasil, nos anos 90, até a relação com o gênero policial dotado de consciência política em Tropa de Elite, nos anos 2000, vemos a passagem de um filme sobre uma personagem com algo a aprender com seu erro, tornando-se mais solidária, para um filme sobre um personagem com algo a aprender com os erros alheios, tornando-se juiz do mundo.

Não havia voz condutora das imagens em Central do Brasil. Em Tropa de Elite, é a voz do doente esclarecido (ou do saber doente), que explica o contexto no qual o primeiro personagem precisa julgar. E punir. Cabe lembrar que a voz de Cidade de Deus, filme paradigmático e matriz de Tropa de Elite, era da testemunha com explicação, vacinada contra os males de seu mundo, oportunista para saber lucrar com os horrores dele. Voz com conhecimento de causa, mas sem consciência e causas políticas. A voz doente ou a voz da doença em Tropa de Elite tem consciência e causa. Não apenas conhecimento.

Da professora cujo poder está na linguagem, que ela emprega escrevendo cartas para analfabetos, que ela não envia quando julga não ser importante, chegamos ao matador uniformizado e esclarecido, cujo poder está tanto em sua leitura de realidade quanto em sua arma, usando o conhecimento empírico e ideológico para aplicá-lo na falta de mediação com a vida. Sim, porque, ao ir para o confronto, as armas de Neto ou Nascimento, ao contrário da caneta de Dora, não são mais mediações, mas instrumentos de execução. Eles decidem quem vive e quem morre.

O que significa, nesse momento e após o Urso de Ouro para Tropa de Elite, esse endurecimento? Podemos encará-lo somente como fruto de um olhar específico, o de José Padilha, que nasce e morre em si mesmo, ou podemos pensar em relações mais complexas para essa premiação? Premiaram uma estética ou um olhar para o mundo? Seria esse o olhar, nesse momento, esperado do cinema brasileiro? Um espírito de metástase, de impotência na violência, de confronto sem saída? Não se está falando em prováveis futuras imitações de Tropa de Elite, por conta de seu sucesso, mas de um paradigma norteador de olhares, que passa a criar expectativas para filmes brasileiros no exterior. Portanto, mudança de paradigma.

Porque depois do Urso de Ouro em Berlim para Central do Brasil, houve uma predominância, ao menos nos filmes com circulação em festivais internacionais de primeira linha e nas salas do circuito europeu, de finais em aberto, mas com uma possibilidade de continuidade positiva para os personagens, sem impor um xeque mate ou nocaute. Walter Salles tornou-se uma matriz contemporânea com sua disposição de injetar alguma potência em personagens aflitos ou sem esperanças de mudanças para si mesmos ou para o mundo onde vivem. Seus deslocamentos tornaram-se, modelos ou não, um paradigma de uma produção com demanda de exílio, de fuga e de reconstrução, tendo em vista a impossibilidade de transformação de seus entornos. Tropa de Elite vem de encontro, em rota de colisão, com essa dramaturgia da zona de escape. Ou do beco com saída.

Como tem sido com outros filmes latino-americanos selecionados para disputar a competição dos três mais importantes festivais do mundo (Berlim, Cannes, Veneza)? Desde Central do Brasil e antes de Tropa de Elite, dois filmes argentinos (O Pântano, de Lucrecia Martel, e O Guardião, de Rodrigo Moreno) e um brasileiro (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburguer), concorreram ao Urso de Ouro. No mesmo período, Cannes selecionou para concorrer à Palma de Ouro um filme do Brasil (Carandiru, de Hector Babenco), dois da Argentina (A Menina Santa, de Lucrecia Martel, e Crônica de uma Fuga, de Adrián Caetano) e três do México (Ninguém Escreve ao Coronel, de Arturo Ripstein, e dois de Carlos Reygadas, Batalha no Céu e Luz Silenciosa). Veneza, nesses 11 anos, colocou para competir pelo Leão de Ouro um brasileiro (Abril Despedaçado, de Walter Salles) e um argentino (A Nuvem, de Fernando Solanas), mas teve também os filmes internacionais de um brasileiro (O Jardineiro Fiel, de Fernando Meirelles) e dois mexicanos (21 Gramas, de Alejandro Gonzáles Iñárritu, e Filhos da Esperança, de Alfonso Cuarón).

Berlim selecionou dois filmes argentinos nos quais a carga de significado para além das experiências dos personagens não acaba com um mistério em torno de seus gestos. O de Lucrecia Martel se passa em uma família em uma chácara. O de Rodrigo Moreno cola em um segurança de gente importante. A seu modo, sim, são filmes duros. Um termina em morte (o de Moreno). Após uma morte por acidente, o outro termina no ceticismo: a não aparição da santa (o de Lucrecia). Há uma porta na cara do personagem e uma porta do personagem na cara de seu mundo em O Guardião. Há um sentimento de perda ou de não descoberta ao final de O Pântano. No entanto, há vida abundante.

Os filmes argentinos escolhidos por Cannes são bastante distintos entre si. O segundo de Lucrecia mescla crença religiosa e desejos secretos em um ambiente delimitado (um hotel), onde a bomba vai explodir após a última perversa imagem final. O de Caetano tem uma questão anterior ao filme: a tortura no regime militar argentino, experiência para qual tentará encontrar imagens, mas disposto a, após o sofrimento, descobrir uma saída para seus personagens. Já os filmes mexicanos oscilam entre a amargura com doçura (no de Ripstein) e o mal estar profundo e transcendental (os de Reygadas). Há interesse no mundo político, mas também na chave pessoal.

Veneza optou pela alegoria política de Solanas, com sua lucidez empenhada em se tornar estímulo a reações e também dotada de certa impotência, e por duas vertentes da globalização dos sul-americanos: a de Iñárritu com uma drama sobre a vulnerabilidade e a de Meirelles com um thriller sobre a conscientização política de um indivíduo. Permanece uma abertura para o pessoal em um e para o pessoal dotado de política em outro.

São essas as forças e os valores em jogo nos filmes latino-americanos que tem despertado o interesse dos curadores de competições do tipo A. No caso dos filmes brasileiros, há algumas variações. Babenco, Salles e Hamburguer, cada um em seus filmes, lidam com a violência: da polícia contra detentos em Carandiru, de um ritual de vingança cultural em Abril Despedaçado e do regime oficial contra seus cidadãos em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias. É em lugares específicos nos dois primeiros casos (sertão, presídio) e sobretudo em um lugar do tempo no outro caso (o ano de 1970, Copa do Mundo, repressão militar).

Há dois tipos de olhar para os personagens nesses filmes de Berlim, Cannes e Veneza. Um encontra uma zona de fuga (Central do Brasil, Abril Despedaçado, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias), outro apenas o paredão (Tropa de Elite). Carandiru é híbrido nesse sentido porque se configura como testemunho de quem sobreviveu ao muro de fuzilamento ou esteve perto da situação.Essa divisão de olhares também poderá ser vista em filmes exibidos nesse período nesses festivais, mas fora de competição, nos quais predominava uma saída individual em um contexto desfavorável (Cidade de Deus, de Fernando Meirelles; Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes; Madame Satã e O Céu de Suely, de Karim Aïnouz), embora a saída em cada caso tenha um tratamento distinto. Ela é cínica em Cidade de Deus, porque em cima da degradação do meio. Ela tem sentido de descoberta em Cinema, Aspirinas e Urubus. Ela é uma aposta no diferente e no distante em O Céu de Suely (acima). E fruto de uma constante abertura para confronto em Madame Satã.

Se há possibilidade de vida nesses filmes - mais em uns, menos em outros - há de se notar que, entre os filmes escolhidos para competir nos festivais de primeira linha, todos lidam com a morte (de irmão, pai, uma comunidade, traficantes, policiais). Morte violenta, provocada por armas. Ou por tortura. As mortes dos filmes argentinos e mexicanos selecionados para Cannes, Veneza e Berlim nem sempre são por armas. Isso quando há. Não se pode apenas, a partir desses casos, constatar nada, porque outros filmes no mesmo período, entre Central do Brasil e Tropa de Elite, também foram exibidos sem competir nesses eventos, alguns próximos da porta para a esperança (Cidade Baixa, Antônia, Mutum), outros nem tanto (Contra Todos, Casa de Alice), mas poucos sem porta nenhuma. Tropa de Elite é uma tranca nessa passagem.

Fevereiro de 2008

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