eletrônica
Limites da imagem - três cenas de Zidane
por Cléber Eduardo

Na Copa do Mundo em que o espetáculo foi a transmissão, com câmera espalhadas por todo o estádio, valorizando a atuação dos treinadores e dos torcedores, a imagem revelou seu limite como prova de verdade. Tomemos como exemplo apenas duas situações ocorridas na partida final entre Itália e França, ambas envolvendo Zinedine Zidane – certamente o protagonista quase solo, em sua jornada de despedida.

Após o pênalti batido e convertido, com a bola trombando com a trave antes de cair atrás da linha, surgiu uma dúvida na Globo. Falcão acreditou que, ao ver o goleiro Buffon indo para o canto direito, Zidane inverteu o lado em cima da hora, fazendo a bola subir sem ter previsto isso, quase perdendo a cobrança. Casagrande, valendo-se da imagem no replay, discordou. Zidane teria planejado desde o início bater o pênalti com aquele alto grau de risco. Segundo disse o ex-jogador corintiano e comentarista, a evidência comprovadora dessa hipótese estava na tela: ele não olhou para o goleiro, apenas para a bola.

Casagrande toma um enquadramento do jogador olhando para baixo, e não para a frente, como prova de verdade. Mas esquece que o olho humano, contrariando sua afirmação, não enxerga como câmera em plano fechado. Um jogador a olhar para a bola na marca do pênalti, também pode ver, no fundo de seu campo de visão, o goleiro. Ainda mais se esse jogador for Zidane, que toma pouca distância da bola, melhorando a visão do goleiro ao fundo sem precisar enquadrá-lo. Se o goleiro cai antes, ou abaixa o calção, ou planta uma bananeira, seja o que for, será percebido pela subjetiva humana. Portanto, a imagem de Zidane olhando a bola, não o goleiro, nada nos informa sobre a visão dele naquele momento.

Um segundo momento, mais dramático e controverso, foi o da expulsão do atleta. A transmissão só flagrou a cabeçada em Materazzi no replay, cumprindo sua tarefa de patrulheira da regra e catalogadora da “intimidade do jogo”. Mas, o fato é que ela nos deu apenas uma parte da verdade: mesmo tendo a imagem da agressão à nossa disposição, essa imagem é pura ação física – sem motivações, sem contexto, sem o processo fomentador da explosão. Vemos apenas Materazzi mexendo a boca, Zidane respondendo, até a explosão de nervos.

Foi preciso recrutar especialistas em leitura labial para construir uma narrativa dramática para o lance, já que, sem essa informação (silenciosa para nós), não existe uma narrativa completa, apenas uma ação sem continuidade narrativa – um momento de espetáculo fechado em si mesmo, como no primeiro cinema. Para narrar, dramatizar, falta o som, o diálogo. Com tantas imagens à disposição, o debate final da Copa se deu em uma imagem, sim, mas em uma imagem incompleta, sem som, só com movimentos de lábios, como no cinema silencioso.

O “som silencioso” dessa imagem é fundamental, mais importante até que a própria imagem, para entendermos a cabeçada – sem com isso legitimá-la. Pouco se escreveu ou comentou sobre a visualidade da cabeçada, onde ela pegou, com que força deu, que seria a evidência a nós oferecida pela televisão. Já a o som do silêncio, o som mudo das palavras, foi virado do avesso. Quando escrevo, no dia 11 de julho, há até a possibilidade, surgida um dia após a final, de Materazzi ter chamado Zidane de terrorista sujo, explorando a ascendência argelina do craque. Uma imagem completa, agora sonorizada sem som, torna-se então uma evidência criminal.

Fica a pergunta: a transmissão de futebol não estará necessitando de um investimento na utilização do som como ferramenta dramática? É incrivelmente pobre, ainda, o uso do som do estádio, seja o do banco de reservas ou dos jogadores em campo. Seria importante investir nas possibilidades de se ter um som geral, ou sons específicos, que não se tornem meros ruídos não identificáveis. Esse é o componente narrativo ausente da transmissão, ainda muito concentrada na figura e na função do narrador semi-onisciente, do comentarista da imagem, do professor de regras, como uma variação dos documentários expositivos. No terreno da imagem, sem dúvida, ganhou a estratégia Vertov, ou parte dela, com a câmera-olho/olho-câmera em cada cantinho, sempre atrás da revelação da verdade, procurando nos dar a ver o que nenhum olho no estádio vê, de ângulos impossíveis, embora com uma narrativa em andamento, montada na hora, sem a manipulação-ordenamento posterior. Mas ainda resta a aproximação com o som direto, com as palavras, os gritos, ainda mais na torre de babel idiomática de uma Copa. Não ouviríamos, com certeza, as palavras de Materazzi, mas o silêncio dele, mesmo com a imagem ali, leva a esse início de reflexão.

Por outro lado, se a imagem mostrou seus limites nesses dois episódios com Zidane (um pela ausência do som, outro por seu própria limitação ontológica – a impossibilidade de termos a exata visão do olho humano de Zidane no exato momento da cobrança do pênalti), temos, ao final da transmissão, uma síntese total após a cabeçada: quando Zidane, expulso, foi registrado passando, cabisbaixo, ao lado do troféu que, como sabia o diretor de transmissão, deveria ser dele. O troféu está ali no gramado, abandonado em frente à porta de saída, desprezado pelo jogador ao qual estava reservado. Nesse plano, vemos uma separação, o divórcio entre um craque tratado como deus e seu troféu, mostrando, de forma melancólica e sem ajuda de nenhum elemento narrativo (a não ser a decifração psicológica tentada por Galvão Bueno), a reconversão do deus em homem. Prêmio Panda de melhor imagem de 2006. Dessa vez, sem a necessidade do som.

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