emulando Fantasmas
do celulóide por Luiz Soares Júnior
L'enfant secret, de Philippe Garrel (França,
1979)
L’enfant
secret é um filme de passagem entre a dimensão
mítico-alegórica dos primeiros filmes de Philippe Garrel (A Cicatriz Interior,
O Leito da Virgem, Le revelateur) e o impressionismo cadenciado
de seus filmes posteriores. O filme se sustenta, como em Le revelateur,
na figura da criança como catalisadora de circuitos oníricos, psicóticos e cíclicos
entre os pais, na imersão das figuras paternas num caleidoscópio de ritmos e ambiências
que remetem muito ao onirismo de certos filmes mudos – particularmente da escola
francesa que conseguiu se distanciar dos cacoetes do surrealismo sem perder sua
dimensão aurática (Delluc, Epstein). O clima sonambulesco
de L’enfant secret se liga também a uma experiência entorpecedora que deve
sua origem tanto à droga quanto à necessidade de demarcar os momentos privilegiados
da durée, aqueles através dos quais a vida parece se intensificar e sugerir
o acesso à Verdade. Este é um princípio que nasce de uma concepção mística da
imagem: a partir dele, os labirintos da lógica narrativa cedem o passo a uma fruição
do instante que tem no silêncio (ou antes: na ausência de linguagem articulada,
da linguagem como discurso) o seu contraponto necessário e especular. O
enredo de L’enfant secret é um fio cristalino que permite a Garrel tecer
uma série de correspondências entre a insônia, o amor e a marginalização social.
Na verdade, não se deve falar propriamente em enredo, mas em uma constelação temporal,
na qual refulgem certos temas que se encadeiam segundo princípios sinestésicos.
Um casal nos é apresentado, mas sem a dimensão propriamente mítica, simbólica
de Le revelateur (o filme se situa em locações urbanas, numa Paris contemporânea,
embora opaca, de luz chapada). Acompanhamos sua trajetória por meio da divisão
do filme em capítulos, designados por títulos, o que sugere uma vocação romanesca
que imprime uma precisão por vezes documental à fantasmagoria de Garrel. Elie
e Jean-Baptiste, interpretados por dois atores bressonianos, Anne Wiazemsky (de
Au hasard Balthazar) e Henri de Maublanc (o anjo conselheiro de Le diable
probablement), descrevem uma trajetória sincopada e catártica, mosaico de
aproximações e recuos que transforma o filme numa sinfonia de gestos em suspensão,
vivências alquebradas, memória estagnada. Duas experiências
traumáticas vêm balizar a percepção de L’enfant secret: a internação psiquátrica
(que transforma o personagem de Maublanc/Garrel num Caligari pós-68) e a droga,
numa evidente referência a Nico. As seqüências nas quais somos ‘apresentados”
ao inferno do eletrochoque e da dependência química não se deixam facilmente discernir,
delimitar; elas sustentam um marasmo que percorre o filme como seu motor vital
(ou mortal), sua paisagem espiritual. Feixes em torno dos quais a trajetória dos
personagens se encrespa e estabelece um núcleo de sentido, elas também permitem
a percepção de um mundo histórico (o ocaso pós-68) e de um continuum existencial
como prolongamentos de uma mesma vivência, como faces de uma mesma moeda. Ou melhor:
anti-vivência, vivência entrópica, intoxicada, destinada à estagnação e
à morte. Sim,
L’enfant secret é a história de uma entropia a dois, de um recolhimento
sobre si que coincide com a negação do mundo, como morte social. O uso de locações
do filme descreve bem esta metástase entre o marasmo de uma determinada instância
histórica, geracional e a submersão do indivíduo em seu pântano interior. A Paris
de L’enfant secret é uma Paris de sonâmbulos, de mortos-vivos, de seres
despertos para a sombra e que dela se alimentam. Um estranho classicismo harmoniza
os semi-tons desarticulados de L’enfant secret, a prevalência do
gesto destacado do contexto narrativo, o lancinante caráter de um mosaico organizado
pelo entrelaçamento de impressões, gestos, associações. É esta harmonia
entre o drama individual e a miséria de um ocaso maior, com repercussões políticas
e históricas, que infunde ao filme uma transparência elegíaca. A
cidade permite um espaço maior, uma cena maior, é certo, mas destinada à projeção
dos mesmos fantasmas que a psicose ou a cocaína implicam, situadas (sitiadas)
no território coagulado do corpo como objeto de afeto ou campo de projeções. Garrel
descobre uma cidade (uma forma de perceber a cidade) cara aos surrealistas, mas
de maneira inversa: neles, a fantasmagoria da cidade contaminava a subjetividade,
a cidade como a grande caixa ressoante da despersonalização, da fantasia de ser
e representar um Outro. Em Garrel, são os fantasmas de uma subjetividade aferrada
a si mesma, nossa incoercível concentração sobre nós mesmos que enforma a Cidade
numa grande arena de objetos parciais: o corpo maiúsculo da Cidade percorrida
e os corpos dos protagonistas em L’enfant secret são antes de tudo um campo
para ser esquadrinhado, retalhado, esmiuçado em planos que os recortam contra
o fundo de outros corpos, outros objetos. Exemplo: Henri
de Maublanc se corta no vidro de uma janela. Temos o plano médio do ator de perfil,
debruçado sobre si. Insensivelmente, o braço cortado é circunscrito pela câmera
em sua relação com a janela. Vemos agora o braço em relação ao vidro da janela:
o braço cortado, o objeto parcial é refletido num corpo mais vasto que o reconfigura;
o braço cortado e a janela, o corpo da criança em serena atitude recortado
contra o corpo da mãe, campo minado e atômico de forças em repouso. Como
em Bresson, mas agora numa dilatação do tempo e do espaço que se entrecruzam sem
cessar, Garrel recorta os corpos, esmiuça o tempo, incorporando a vivência afetiva
numa dimensão estilhaçada, impresssionista. Parece-me evidente que há algo de
bressoniano nessa forma como o espaço de L’enfant secret é recortado: um
espaço orgânico, que mescla e converte numa única e mesma matéria objetos de naturezas,
dimensões e situações diferentes: recantos de muros e trechos de corpos, amantes
em sufrágio contra blocos de concretos uniformes, mãos sobre cadeiras, mesas,
janelas, rastros de uma presença que se dinamita e anula no encontro com o mundo. O
espaço recortado de L’enfant secret pode ser bressoniano, mas não a temporalidade.
Cada plano de Garrel, sobretudo a partir deste filme, nos faz intuir a presença
como um rastro que se define na relação com os objetos; quando um personagem sai
do plano, habitamos um instante em suspenso, imersos no espaço imantado que acaba
de ser descoberto pela desaparição do personagem. A câmera de Garrel chega sempre
antes ou depois do personagem, ela fica à espera dele e não abandona o espaço
até que nos seja possível recuperar, com o auxílio da memória e da imaginação,
a presença que se esvai. Operação alquímica por excelência
a que só o manejo da temporalidade nos permite o acesso, esta da gênese e de uma
presença e de uma ausência. Em um trecho de L’enfant secret, a câmera se
posta diante de um muro, como se nos obrigasse a intuir (ou imaginar, fantasiar)
uma história, um sentimento para preencher aquele décor, uma presença para dar
significação àquele objeto mundano bruto, indiferenciado. Logo, chega a personagem
de Anne Wiazmesky diante do muro e se debruça sobre si, indecisa em relação aos
rumos de seu romance e do destino a ser dado ao filho. O plano é longo, cerca
de dois minutos. Quando a personagem abandona o muro, Garrel ainda concentra a
câmera por alguns segundos sobre ele, como se quisesse representar o irrepresentável,
a saber: os efeitos, as transições, as recíprocas trocas entre o drama do personagem
(presença opaca e indiscernível a princípio) e o mundo, a interlocução de ambos
como um rastro que não pode ser fixado pela câmera, mas intuído pelo espectador.
Assim, tanto o mundo (o muro) oferece um suporte para que o drama interior do
personagem se exteriorize, como os objetos são “humanizados” pela presença humana,
adquirem um relevo fantasmagórico. Presença e ausência (o mundo antes do advir
da personagem e depois de sua partida) se mostram e se ausentam num jogo de luzes
cambiantes, num gestual e numa postura corporal garrelianas que consiste
em nos fazer entrever o corpo como uma reservatório de escolhas em potencial,
de mundos em porvir e de afetos em reserva. Em L’enfant
secret, filme marcado pelo perfume fúnebre da ausência de Nico e de tantas
outras ausências (as esperanças pré-revolucionárias, o cinema como totalidade
significante, tributária de um sujeito unitário, significante), a passagem propriamente
– do alegórico para o subjetivo, da sombra de uma ausência para o rastro de uma
presença que lhe é adjunta – torna-se um objeto precioso, jogo de claro-escuro
e ritmo cambiante, no qual o espectador desempenha papel essencial e igualmente
fantasmagórico.
Dezembro de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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