O Porto (Le Havre), de Aki Kaurismäki
(Finlândia/França/Alemanha, 2011)

por Pedro Henrique Ferreira

A paródia do milagre

Com O Porto, o diretor finlandês Aki Kaurismäki segue realizando suas pequenas paródias cartunescas sobre temas sérios, desta vez, uma película sobre o grande tema europeu do momento: a imigração. Enquanto sua esposa está hospitalizada com câncer, o engraxate Marx (André Wilms) esconde um menino, imigrante africano, do inspetor Monet (Jean-Pierre Darroussin). Pelos nomes dos personagens, são evocados dois sociólogos e duas teses a serem empregadas em relação ao tema - o comunismo de Karl Marx refletido na vizinhança do engraxate, e a idéia do exercício policial como fazer-política desenvolvida pelo eminente sociólogo Jean-Claude Monet, nascido em Le Havre - cidade portuária que dá título e ambienta o filme. No fundo, as remissões um tanto quanto cafajestes servem menos a um universo discursivo hermético que trataria o tema com absoluta seriedade, e mais como parte de uma grande ironia, um certo chuta-balde descompromissado que olha com humor e alegria a situação mais desesperadora.

Kaurismäki seria um grande maneirista não fosse justamente por tratar seus mestres com grande irreverência. Há uma filiação ostensiva à encenação radicalmente rígida de Robert Bresson, tanto no posicionamento e gestos dos atores, suas entradas e saídas de cena, quanto na decupagem que busca forças expressivas mais nos objetos do que nas feições de um rosto. Mas, enquanto no cinema de Bresson estes recursos servem a um esvaziamento dos sentimentos humanos rumo a um existencialismo, Kaurismäki os utiliza justamente para o contrário: mostrar os objetos não é um método de esvaziamento, mas de demonstração de afeto. Todo o carinho que o atabalhoado engraxate tem pelo negro faminto é impresso mais no sanduíche que ele deixa na escadaria do que por palavras ou olhares.

Kaurismäki parece se deparar com a impossibilidade de erguer monumentos cinematográficos maiores que os já construídos e, em vez de imitá-los, opta por brincar com sua própria infimidade.
Talvez venha daí a iluminação das cenas de cima para baixo, afundando os tetos em escuridão – se Deus não está visivel, ao menos seus efeitos aqui e acolá estão. É talvez por isso, também, que tenha montado um método de dissecar os gêneros através da paródia e de, em vez de reverenciar, destroçar e redirecionar os sentidos implicados em determinados recursos. Ao invés de mortos, seus personagens parecem ter vida em abundância. É que seus sentimentos são travados por uma espécie de lei, de força maior (encarnada, talvez, pela mão do diretor). Assim, o corpo duro ganha notoriamente um certo grau de comicidade pois, nele, a vida degladeia em vão contra as diretrizes de encenação rígidas. A lei kafkiana novamente se impõe mas, desta vez, puxando mais seu lado absurdo (e irreverente) do que o existencial.

E é justamente a Lei que está em jogo nesta alegre sátira que extrai toda a sua graça das diversas situações disparatadas de busca-e-fuga. Há um certo retorno às formas básicas de Um Condenado à Morte Escapou ou Pickpocket, mas fazendo do tópico essencialista do aprisionamento algo que agora reflete em uma situação ao mesmo tempo cotidiana e sócio-política: o engraxate fanfarrão, símbolo de uma filosofia mas também de uma classe social, esconde o menino imigrante da Lei que lhe caça. É neste momento que seus vizinhos compreendem o sentido comunitário da caridade e lhe ajudam com alimentos e abrigo. O cenário, sempre repleto de linhas e ângulos retos, é entortado pela câmera justamente nos momentos que o menino escapa de um confronto direto.

Há também um milagre. Se em seu filme anterior, o noir Luzes na Escuridão, o guarda noturno era abandonado pela femme fatalle para encontrar o amor com a vendedora de um trailer (num plano de mãos dadas muito semelhante ao final de Pickpocket), em O Porto este milagre acontece quando as vontades de Marx e Monet finalmente se conjugam e eles vão tomar uma cerveja. O menino escapa com destino à Inglaterra, e a mulher do engraxate inesperadamente se cura do câncer. Na pequena e bonita paródia de Kaurismäki, o milagre é o momento em que a caridade vence a lei. Todo o esforço artístico é, de alguma maneira, mostrar que, latente, esta caridade já (e ainda) existe.

Outubro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta