in loco - cobertura dos festivais
Líbano (Lebanon), de Samuel
Maoz
(Israel/França/Líbano/Alemanha, 2009)
por Fábio Andrade
O
problema moral
Há um lugar comum no pensamento cinematográfico
que faz uma equiparação entre os verbos "filmar"
e "atirar" em inglês (em ambos os casos, "to
shoot"). Em Nível 5, Chris Marker destacava
essa equivalência, não necessariamente casual, em
um contexto específico que a justificava: as imagens de
uma jovem japonesa capturadas momentos antes de ela se jogar no
abismo revelavam uma cumplicidade entre o "atirador"
e a suicida. A pessoa por trás da câmera nada havia
feito para impedir o suicídio da moça. Em vez de
intervir, o sujeito apontou a câmera, disparou e fez-se
cúmplice daquela morte. Líbano parte da
mesma equivalência para levantar a mesma questão,
mas seu contexto e resultado são bastante diferentes. Acompanhamos
um grupo de soldados na guerra do Líbano, em 1982, mas
a câmera se limitará, quase exclusivamente, ao interior
do tanque que eles ocupam. A comunicação com o mundo
exterior virá pelo olhar do soldado que mira os disparos
da arma do tanque: a tela ganha um alvo em seu centro, os movimentos
de câmera são combinados a um tratamento sonoro que
equivale aos ruídos do braço da arma, e nos são
oferecidas as imagens vistas por esse mesmo soldado. Câmera
e arma ganham, portanto, um mesmo e exato sentido: um olho no
viewfinder, um dedo no botão e as mesmas imagens
diante da lente e do canhão.
A princípio, não há nada de condenável
nesse recurso - como qualquer procedimento, isento de sentido
próprio que independa de uso ou contexto. Samuel Maoz poderia
se aproveitar desse recurso, tirado diretamente dos videogames
em primeira pessoa (Doom e descendentes), para produzir
um jogo de dentro/fora de potencial interesse para um filme de
guerra. Além disso, a restrição espacial
poderia fazer de Líbano um autêntico kammerspiel
do gênero, com seus poucos personagens, sua quase imobilidade,
sua tendência para duração. Mas Líbano
não se contenta em ser apenas um filme de guerra, um trabalho
de gênero que tem como seu próprio fim a reinvenção
de suas convenções. Líbano precisa
fazer da guerra - e da premissa estética que o norteia
- uma questão moral. O problema é que, de todos
os gêneros cinematográficos, o de guerra talvez seja
o que menos se presta a um tratamento moral. Pois a moral não
é, de fato, operativa nas guerras. A guerra, ao contrário,
parte do princípio inevitável da imoralidade: não
há quem discorde de seus malefícios, seja pelo assassinato
de civis, pela dominação de um povo por outro, pela
falência de qualquer possibilidade de diálogo e diplomacia.
A guerra, ao contrário, vem quando não há
mais moralidade possível, quando a imoralidade parece um
mal menor diante de uma certa situação. O enxerto
moral que Líbano promove levanta uma falsa questão,
pregando para uma oposição inexistente. Resta, somente,
o grito de horror.
Samuel
Maoz chega à moral justamente pela equivalência entre
câmera e arma: olhamos pelo ponto-de-vista de quem atira.
O duplicador do visor do canhão cria uma dinâmica
de zoom que conduz nosso olhar: vemos o que o soldado
vê. A imprecisão do gesto, porém, se espatifa
na precisão do olhar. Pois em toda a errância da
câmera-canhão de Líbano, Samuel Maoz
não se furta colocar diante dela - em quadros encontrados
com rapidez e precisão - toda sorte de símbolos
que gritem seu caráter alegórico: uma gravura religiosa;
uma mãe que tem a filha e marido assassinados; um vendedor
de galinhas estraçalhado pelo "nosso" primeiro
tiro; painéis de paisagens de Nova York, Paris e Londres
que evocam uma realidade distante e evidenciam um sério
complexo de inferioridade; e, a mais atroz das atrocidades, o
olho lacrimejante de um inocente jumento em sua agonia final.
O soldado vê o jumento com a barriga aberta, faz um zoom
in nas narinas que ainda respiram, e passeia pelo rosto do
animal até encontrar uma lagriminha derradeira. Maoz se
coloca contra a eficiência demandada do soldado, mas a cumpre
exemplarmente: seus alvos são sempre claros, e seus tiros
sempre certeiros.
Nesse
sentido, Líbano é um filme tão ruim
quanto é visível sua franqueza. Samuel Maoz quer nos
convencer da imoralidade da guerra e, para isso, não esconderá
o traço grosseiro de suas manipulações. Quando,
já no final do filme, acompanhamos a fuga final dos soldados,
não teremos acesso uma vez sequer às imagens do canhão.
O abandono súbito do dispositivo grifa: é hora de
se emocionar com os dramas pessoais dos pobres soldados (coroado,
inclusive, com o cinismo de um gag sobre uma mãe
que não sabe que seu filho está morto). Para nos convencer
de um ponto pacífico, o diretor nos engendra em um círculo
sádico do qual deveríamos, ele parece insistir, compartilhar
ao menos a culpa e a responsabilidade. Mas Maoz, tão afeito
à sua brincadeira de câmera-canhão, não
percebe o inevitável: nós apenas vemos as imagens.
Quem escolhe o alvo e aperta o gatilho é sempre o próprio
diretor.
Setembro
de 2010
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