in loco - cobertura dos festivais
L.A. Zombie, de Bruce LaBruce (EUA, 2010)
por Filipe Furtado

RaniaO zumbi interior

L.A. Zombie é uma fabula moral sobre um zumbi com poder de reanimar corpos através de necrofilia gay. Esta descrição, a principio absurda, dá conta do tamanho da empreitada à qual o veterano LaBruce se lança com seu filme mais recente, assim como do tom direto com que ele aborda seu projeto. É um filme de paradoxos claros, que se abre com o zumbi surgindo do mar como em um batismo que lhe prepara para adentrar a sociedade e se encerra com ele cansado, dias depois, carregando todo o peso de uma história de sofrimento e ressurreições, cavando a própria sepultura para poder descansar.

À primeira vista, é possível ver L.A. Zombie como pouco mais que uma fabula de desconstrução estruturalista, em que o filme de zumbi é revirado, com o zumbi que traz vida no lugar da morte, e como isto afeta também a alegoria ocasional sobre homossexualismo como vírus no cinema de horror. Mas tal leitura é bem redutora sobre o que LaBruce busca aqui, assim como seria tratá-lo só como outro confronto do cineasta com a representação de boa parte do cinema gay de festivais, com o zumbi mendigo de LaBruce com seu pênis putrefato e sêmen sangrento certamente como uma das imagens mais fortes do homossexual como figura marginalizada que o cinema contemporâneo tenha produzido, justamente por sua recusa em existir só como figura alegórica.

RaniaSe o caminho mais fácil para chegar a L.A. Zombie é pela via da representação, então é melhor passarmos ao largo destas questões mais visíveis e observarmos como o filme utiliza suas locações em Los Angeles, como LaBruce é completamente consciente da cidade como um espaço cinematográfico mais do que mitificado e de como o seu próprio filme se insere numa outra tradição alternativa do imaginário audiovisual deste espaço. Los Angeles não está no nome de L.A. Zombie por um capricho; a relação de nosso herói com este espaço é vital. Especialmente na forma como o cineasta alterna o registro entre o tom mais excessivo e barroco dos planos com o zumbi, com os planos mais duros em que ele assume seu alterego mendigo. Parte da força de L.A. Zombie brota justamente da disposição de LaBruce em conflagrar estas duas imagens numa só, sem meios tons, ajudado muito por um excelente uso de fotografia digital. É muito por conta disso que, a despeito de alguns momentos, o filme conserva uma dureza que se distancia um tanto do teor mais bem humorado que víamos em Otto Up with Dead People ou The Raspberry Reich.

Filmado da forma mais direta possível e todo desprovido de diálogos, L.A. Zombie tem momentos que chegam a sugerir um documentário sobre mendigos em Los Angeles, cujos rolos terminaram misturados com um pornô gay. Uma aproximação que, como o próprio LaBruce já mencionou, termina por reforçar ainda mais a relação do filme com um típico filme pornográfico. Num dos melhores momentos do filme, nosso zumbi resolve reanimar o cadáver de um mendigo doente. Ele entra no caixote onde o corpo está e, no corte para o plano interior, LaBruce nos mostra o caixote como uma muito mais elaborada e distintiva residência de papelão. É uma boa gag visual, mas sobretudo uma forma de dignificar e reanimar em imagens aquele corpo sem vida, como o zumbi está prestes a fazer sexualmente.

RaniaL.A. Zombie, porém, é sobretudo uma fábula sobre um zumbi alienígena melancólico em busca desesperada por contato humano. Um contato que ele só consegue encontrar pelo viés sexual, com outros que, como ele, foram descartados de uma maneira ou outra. Os parceiros do zumbi vêm invariavelmente de algum infortúnio ou crime. LaBruce dá o tom na segunda seqüência do filme, quando um jovem dá carona ao zumbi e a câmera corta de forma grosseira para a cena de um acidente. Ainda sem conhecer as regras do jogo, o espectador imagina estar diante da primeira vitima da criatura, mas no lugar disso assiste ao zumbi acordar e se colocar a trabalhar e reviver o jovem, único personagem que lhe reconhece a existência antes de ser reanimado.

Fora desta seqüência, neste filme de encontros cabe ao zumbi o papel de fantasma, marginal entre os marginais, errando pela paisagem de Los Angeles em busca de novos cadáveres  para travar contato. A condição de zumbi se assume quase como um escudo de defesa que  ele precisa abandonar aos poucos, a cada novo encontro sexual em que ele reanima um cadáver.  O zumbi progressivamente absorve um peso agonizante.  A força política de L.A. Zombie está neste corpo agonizante que busca um repouso possível enquanto absorve a paisagem desolada à sua volta, e o filme é muito hábil em deservolver esta condição, esta espécie de estado-zumbi por acúmulo ao longo da sua duração. Se desde o Romero a figura do zumbi sempre encontrou espaço simbólico muito fluído, LaBruce lhe devolve uma posição política única ao desenvolver seu estado-zumbi.

Outubro de 2011

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