ensaios Os
últimos dias de um lutador por Fábio Andrade
Logo no início de O Lutador, seguimos os passos
de Randy "The Ram" Robinson (Mickey Rourke) numa câmera que o enquadra
pela nuca. Embora este tipo de plano tenha se tornado uma das convenções usadas
por quase todo cineasta que queira para si o selo de "filme de arte"
no circuito contemporâneo, a maneira de caminhar, a atmosfera cinzenta e a vegetação
fria que circula o trailer de Randy fazem pensar em um filme, uma caminhada
e uma nuca específicas. As coisas ficam ainda mais claras quando, mais ou menos
no meio de O Lutador, ouvimos este diálogo entre Randy e Cassidy/Pam (Marisa
Tomei):
Randy:
Goddamn they don't make em' like they used to. Cassidy:
Fuckin' 80's man, best shit ever! Randy: Bet'chr
ass man, Guns N' Roses! Rules. Cassidy:
Crue! Randy: Yeah! Cassidy:
Def Lep! Randy: Then that Cobain pussy had
to come around and ruin it all. Cassidy:
Like there's something wrong with just wanting to have a good time? Randy:
I'll tell you somethin', I hate the fuckin' 90's. Cassidy:
Fuckin' 90's sucked. Randy: Fuckin' 90's
sucked. De fato, é raro encontrarmos filmes que assumam
um diálogo frontal e direto com outra obra que lhe seja minimamente contemporânea
que não seja pela paródia ou a citação – registro que agrupa desde Todo Mundo
em Pânico e similares, até a inserção de Mal dos Trópicos em Na
Guerra, de Bertrand Bonello. Pois, com uma clareza que não víamos desde a
olhada de Clotilde Esmé para a câmera que confrontava Bernardo Bertolucci em Amantes
Constantes, Darren Aronofsky dá nome à obra que mais assombra seu O Lutador.
Os Últimos Dias (Last Days); filme de Gus Van Sant, de 2005, livremente
inspirado nos dias finais de vida do líder da banda Nirvana, Kurt Cobain. Só que,
diferente de Garrel com Os Sonhadores, Aronofsky não parece querer responder
ou contra-argumentar Os Últimos Dias. Sua menção, porém, clareia algumas
das questões centrais de O Lutador; seus méritos, seus incômodos
e, principalmente, sua inserção tanto como obra cinematográfica, quanto como discurso
sobre um certo estado de coisas aguçado pela cultura pop das últimas três décadas.
Para
pensar melhor sobre isso, voltemos ao ponto de partida do filme de Van Sant. Em
Os Últimos Dias, ele dribla a possibilidade do biopic estrito (embora
Cobain seja mencionado como inspiração nos créditos finais, a personagem do filme
ganha o nome de Blake) para apreender um estado; mais precisamente, uma maneira
de estar. Blake é o ser desconectado (ou, aparentemente, que se desconecta) do
mundo ao seu redor. Como em todo filme de zumbi, se movimentar não necessariamente
significa estar vivo, e é só isso que vemos Blake fazer: mover os músculos, de
maneira torpe e desgarrada. Mas Os Últimos Dias não é apenas movimento,
e há dois momentos pontuais em que Van Sant estabelece uma instância discursiva
(e não narrativa – camada que o filme parece sempre se esforçar por esvaziar).
Primeiro, quando Kim Gordon, baixista da banda Sonic Youth (não à toa, uma das
maiores influências do Nirvana), pergunta a Blake se ele pede desculpas por ser
um clichê do rock'n'roll. Segundo, quando um dos jovens que rondam pela casa ouve,
em vinil, "Venus In Furs", do Velvet Underground. Esses
dois momentos são essenciais, pois neles a preocupação imagética do filme se torna
abertamente uma questão. Antes de mais nada, por estabelecer o clichê como morte:
se vemos em tela um morto-vivo, é porque Kurt Cobain sucumbe na luta contra a
redução de sua própria imagem – daí seu espírito flutuar, quase transparente,
restando apenas a imagem sem alma, em todo o seu peso e inércia, nos planos que
entrecortam os créditos finais. Pois se ver transformado em um estereótipo (a
rigor, um tipo gráfico para produção em série), uma imagem que não se tem possibilidade
de controlar, é se ver reduzido, feito algo específico, incompleto em aparência
de completude (lembremos da apatia de Blake diante do clipe do Boyz II Men que
passa na tv). A imagem construída para Cobain o transformara em um clichê, e virar
um clichê é morrer. Aprisionar Kurt Cobain em uma outra imagem – mesmo que ela
se escore em hierarquias particulares de justeza – seria compactuar com seu assassinato,
e por isso Os Últimos Dias se mostra inapreensível para além da fantasmagoria
de sua própria composição (característica que o aproxima de Não Estou Lá,
de Todd Haynes). Há, porém, outro parâmetro a se considerar,
que vem com o Velvet Underground no segundo momento citado. Pois eles – com a
parceria inestimável de Andy Warhol – foram talvez a primeira banda underground
a assumir a performance como elemento de construção cênica, e basta passar
os olhos pelos últimos parágrafos de Mate-me Por Favor, radiografia do
punk escrita por Legs McNeil e Gilliam McCain, para perceber que a raiz daquele
momento sempre foi iconográfica (desejo, aliás, bastante claro no filme de Gus
Van Sant): Elvis Presley. O Velvet Underground é marcado pelo abraço consciente
e construtivo da imagem em sua efemeridade; não à toa, a movimentação em torno
da banda era chamada de "cena" – termo hoje já bastante cristalizado
no vernáculo pop, que aproximava a vivência da representação. Mas, se a presença
de Kim Gordon acentua, no plano de "Venus In Furs", traços de uma linhagem,
o filme de Van Sant percebe também que algo precioso mudou entre 1967 e 1994.
O que teria maculado a performance no meio desse caminho, a ponto de Kurt Cobain
usá-la (pois negar esse uso seria ingênuo) no sentido inverso de Lou Reed, buscando
desconstruir as grossas camadas empilhadas na gênese do punk? Entre estes dois
pontos, flutua exatamente a década de 1980.
Do escape do clichê
ao cinema vintage De
certa forma, é a partir dessa cronologia que Darren Aronofsky revive Os Últimos
Dias. O Lutador é um filme sobre o que permanece dos anos 1980, duas
décadas depois. A década de 1990 e seus ícones aparecem, aí, como um acidente
de percurso que as personagens não podem evitar, e que afeta a sua sobrevivência
para além de um momento de plenitude existencial. Pois se Kurt Cobain "estragou
tudo" (como se diz no filme), é por ter provocado uma cisão profunda com
a mentalidade que lhe antecedia, e essa era justamente a que esvaziou – em um
duplo movimento clássico de negação histórica do momento anterior – as ferramentas
de Lou Reed e seus contemporâneos: o uso consciente da imagem como performance
fora reduzido ao clichê. No Velvet Underground a imagem era um elemento de soma,
não de redução, que expandia o número de significados da combinação dos diversos
signos. Os
anos de 1980 que interessam a Aronofsky são os da performance inchada e facilmente
decodificável, em que os longos cabelos precisam ser sempre tingidos, como os
corpos são modificados pelos anabolizantes e o bronzeamento artificial. Randy
"The Ram" – o homem inventa um nome para negar o seu de batismo – sente-se
mais confortável como personagem do que como pessoa real. Mas é dos destroços
do estrago provocado por Cobain que Aronofsky constrói O Lutador: a imagem
de Ram está cristalizada no passado, e só pode ser alcançada em uma relação extremamente
mediada. Por isso existe, no filme, a preocupação constante de contrastar esses
dois regimes imagéticos. Depois de Cobain, a imagem que Randy tem a oferecer não
tem mais função no presente (lembremos, aqui, da cena em que ele tenta vender
uma coletânea em VHS dos momentos antológicos de sua carreira); resta sobreviver
de sua própria ruína. A operação, porém, se torna um tiro
no pé, pois passar por Cobain é, para Aronofsky, passar pelo filme de Gus Van
Sant; e esse trajeto evidencia as diversas fragilidades deste que é seu melhor
filme. É ele, porém, quem muito conscientemente provoca essa mediação, evocando
ferramentas caras e facilmente associáveis ao cinema de Gus Van Sant: desde o
citado balé de nucas até signos mais claros, como o video game (junto com
o boneco feito à sua imagem, momento mais forte em que Ram mostra o orgulho com
que se reconhece um estereótipo) e, principalmente, a maneira como ambos os realizadores
constroem suas narrativas como parábolas religiosas. Onde, em Os Últimos Dias,
tínhamos a sombra de cordeiro que os jovens mórmons atiravam sobre Blake, aqui
essa construção é mediada por outra camada imagética: a menção de A Paixão
de Cristo, filme de Mel Gibson, pela personagem de Marisa Tomei. Esse último
exemplo começa a revelar a construção de O Lutador como um produto de terceira
mão: assim como não se faz uma parábola bíblica sem passar pelo cinema, não se
pode pensar O Lutador sem passar por um outro filme, uma outra imagem que
o assombra. O problema maior, nesse sentido, é que Aronofsky reduz o empréstimo
de recursos, muito expressivos nas mãos de Gus Van Sant, ao que eles têm de mais
epidérmico. Há, aí, uma estranha coincidência de olhares
com sua personagem, pois Aronofsky usa essas ferramentas sempre pelo clichê, o
pastiche – justamente a declaração de impotência diante de algo já tido como definido
e imutável. Mas a aparência não é a essência e, por isso, onde havia, em Os
Últimos Dias, movimentos que espiralavam no vazio, aqui as mesmas ferramentas
geram sentidos absolutamente opostos. O Lutador troca os inúmeros feixes
de sentidos desviados no filme de 2005 por paralelismos e operações de dramaturgia
que se fecham em um único sentido. É o caso, por exemplo, da oposição de Randy
e Cassidy – ele que encontra verdade em um nome inventado (Ram) de sonoridade
próxima ao nome real que ela esconde (Pam); ele, que vive para a performance,
ela, uma performer por sobrevivência; um homem que modifica o corpo
para congelar o passado, e uma mulher que é agredida por não tentar esconder sua
idade. Ou também da dobra temporal, labiríntica em Os Últimos Dias; de
causa e efeito em O Lutador. Ou, ainda, do desvio mais gritante na edição
de som: enquanto Gus Van Sant descolava o som da diegese da cena para produzir
sentidos vaporosos e quase abstratos, o mesmo recurso é utilizado por Darren Aronofsky
com fins dramatúrgicos estanques – do que o maior exemplo é o retorno dos gritos
da platéia quando Randy entra, pela primeira vez, no balcão de frios onde começará
a trabalhar. Aronofsky obriga o espectador a conectar pontas que, assim, não podem
ser encaixadas com outros pares. Com
esse jogo de camadas, o que temos não é uma maior complexidade, mas sim um distanciamento
que se torna, por fim, paródico: O Lutador é um filme vintage –
imagem que ele assume com a visita ao brechó (em que a personagem de Randy usa,
ironicamente, uma camisa de flanela xadrez), onde mais uma vez as imagens de dois
momentos históricos da cultura pop serão contrastados em sua superfície (o casaco
verde brilhoso que Randy escolhe para sua filha, e a palidez monocromática preferida
pela jovem). Se há uma vida notável na personagem de Mickey Rourke (em um trabalho
de ator realmente irrepreensível), é interessante como a reprodução estrutural
de momentos de Os Últimos Dias condena essa personagem à morte. Pois enquanto
no filme de Gus Van Sant o suicídio é o momento em que a alma se liberta de um
clichê, Aronofsky faz exatamente o contrário ao arremessar o desejo (que seja
um desejo de esvaziamento, pouco importa) de imagem de sua personagem para fora
do quadro. Pois a obra vintage, como toda paródia, é uma apropriação vampiresca
que reduz uma construção estética autêntica a uma casca de aparência. E que, a
despeito de seu encanto passageiro, nasce já obsoleta, sombreada pela escolha
original de não ser mais que passageira. Abril de 2009
editoria@revistacinetica.com.br
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