L.A.P.A.,
de Cavi Borges e Emílio Domingos (Brasil, 2007) por
Rodrigo de Oliveira Fabricação
da espontaneidade
Não deixa de ser curioso que
a carreira de L.A.P.A. nas telas tenha começado justamente numa Mostra
do Filme Etnográfico, uma vez que todos os clichês do olhar clínico exterior sobre
um ambiente exótico/selvagem a ser desbravado parecem se aplicar a cada uma das
seqüências do filme de Cavi Borges e Emílio Domingos. Em verdade, esta é uma condição
reinstalada a cada nova empreitada de Cavi no cinema (seja dirigindo ou apenas
produzindo filmes dos amigos, num dos núcleos audiovisuais mais fortes do Rio
de Janeiro atualmente). Muito mais exercícios de uma vontade de realização do
que propriamente um diálogo efetivo com os impulsos estéticos e as narrativas
surgidas à margem, curtas como 7 Minutos ou Vidigal já antecipavam
aquilo que em L.A.P.A. fica evidente: a distância do objeto não é mero
fetiche de classe, nem a aproximação é apenas festiva – ainda que carregue muito
disso, invariavelmente. Observar de longe, ou isto que chamam de “visão panorâmica”
das coisas, seja do ambiente da favela ou do subúrbio, é uma limitação crônica
que foi se transformando, com o passar dos filmes, em matriz dramática. E
é por isso que não soa estranho para o filme entrar pela primeira vez neste universo
através de sua estrela mais anunciada e há muito tempo desgarrada, quase a ponto
da incompatibilidade mesmo. A presença em cena de Marcelo D2 é quase tão folclórica
quanto sua própria situação dentro do ambiente observado pelo filme, e seu discurso
inicial, em se tratando de “um filme sobre a Lapa” e “sobre o rap no Rio”, nos
leva exatamente para fora daí: D2 fala da culpa católica que toma o rapper
na hora em que se deseja ganhar dinheiro, e que não existe mais pudor com “o proceder
do movimento”. Mas L.A.P.A. não julga ou hierarquiza a validade dessas
idéias, nem mesmo quando as coloca muito próximas da opinião anti-sistema radicalmente
oposta de Black Alien e B Negão (com quem D2 divide uma origem comum no Planet
Hemp, mas que ocupam um espectro infinitamente menos badalado que o ex-colega
de banda). O romantismo é uma postura que o próprio encaminhar do filme vai desmontando
em nome de um saudável pragmatismo. Que se fale desde o
início em dinheiro, que seja uma questão de largada a martirização da figura do
rapper em nome de um conjunto de valores que condicionem sua expressão
política e artística, parece muito justo num filme que vai buscar em duas figuras
iniciantes e de menor estatura a fonte principal de suas emoções. É também na
implacável realidade do dinheiro que o filme chegará, depois de cumprir seu esperado
trajeto íntimo com Funkero e MC Chapadão, dois agentes da periferia tentando se
estabelecer no centro estabelecido que é a Lapa atual. E chegar aí não significa
capitular diante da “verdade dura da vida”, porque quando fala em dinheiro, L.A.P.A.
está mirando mesmo é na visibilidade: se por vias ligeiramente diferentes,
Funkero e MC Chapadão conseguem alguma projeção dentro do cenário do rap, a exibição
de seus talentos (e de tudo o que envolve o talento de alguém que trabalha com
rima de rua: dramas pessoais, traumas do passado, pobreza e superação) é também
um passo profissional dentro de uma carreira que se constrói e que precisa de
palco e platéia para se firmar. É aí que opera bem a distância
incontornável entre o modo de registro e a cena que se dá diante da câmera: não
há favor nenhum sendo devido de um lado a outro, mas uma troca franca de interesses.
O documentário se torna tanto menos paternalista quanto mais assuma que existe
para “dar voz”, sim, mas a alguém que de fato já tenha a sua própria, mais ou
menos articulada, e requeira este espaço com propriedade. Encantado com a eloqüência
malandríssima do primeiro e o sem-jeito quase infantil do segundo, L.A.P.A.
sabe como tirar exatamente isso que quer de seus dois protagonistas, e ao longo
do processo, ainda forçar uma complementaridade totalizante entre as duas figuras,
cuja soma seria igual ao “rap carioca”. De Funkero ouviremos sempre as melhores
frases, os melhores casos, as melhores rimas. É quem já se posicionou de maneira
segura o bastante em relação a sua arte a ponto de perceber suas ranhuras e seus
prazeres sem que uma coisa e outra condicionem exclusivamente o trabalho: é quem
diz que o que o salvou não foi o rap, mas os livros (é um leitor de Monteiro Lobato),
quem atua com um verdadeiro projeto artístico sobre a aproximação do rap com o
funk (para o qual recebe um ótimo plano de improviso com um beat-boxer
nas ruas sem asfalto do Jardim Catarina). Já Chapadão é muito menos programático
na construção de sua carreira e de sua figura, dele o filme recebe uma inocência
e um atrapalho quase cômicos. Contra a imagem do sujeito que sobreviveu a perdas
que nunca saberemos exatamente quais foram, surge este outro inserido dentro de
um ambiente familiar suburbano tradicionalíssimo, uma reunião no sofá de casa,
onde Chapadão recebe sermões do pai, safanões e afagos da mãe, que diz lutar contra
a discriminação sofrida pelo filho quando anuncia aos outros que o rap é sua profissão.
É
assim, sempre no nível do registro, que L.A.P.A. vai alimentando um discurso
que é, ao mesmo tempo, devotado aos humores da cena e imune às suas implicações,
que tenta preservar uma dinâmica interna entre personagens e situações do mesmo
modo que anuncia constantemente a independência dos sentidos que esse olhar pode
atribuir. Isso está lá, na tentativa equivocada de forjar uma ambiência a partir
da percepção mais banal do espaço da Lapa e seus cartões-postais “sentimentais”;
está presente ainda, mais adiante, quando Cavi Borges e Emílio Domingos apreendem
uma batalha de improviso entre rappers num plano-seqüência enorme, ao que
parece para preservar a fluência e o surgimento espontâneo daquelas palavras,
para então coroá-lo com uma câmera lenta e uma imagem borrada que não dizem nada
sobre a cena, mas dizem muito sobre o desejo de ingerência sobre ela. Há
uma consciência muito clara de que se observa de longe para se observar melhor,
e resumo maior das possibilidades e das limitações dessa atitude veremos na última
seqüência do filme. Depois de reencontrarmos Funkero, alguns meses depois, morando
sozinho no coração da Lapa e “vivendo de cachês” como músico, vamos à MC Chapadão,
que está longe desse mesmo objetivo. A câmera o persegue pelos corredores de uma
biblioteca (ambiente dos livros ao qual pertence a imagem do outro rapper,
não ele em toda sua desarticulação intelectual), até que se revele que seu trabalho
atual é a manutenção elétrica de uma universidade pública – trocar lâmpadas, uniforme
de peão, tudo isso. É sobre essa imagem-declaração que L.A.P.A. terminaria,
resumo de seu tour pelo alto e pelo baixo da profissão dos rimadores, para
terminar exatamente no meio: onde a esperança de uma carreira se anuncia, enquanto
outra é colocada em espera pela força das obrigações sociais, “eis o rap do Rio,
hoje”. Mas é quando Chapadão e outros de seus colegas de
trabalho (também rimadores), puxam batidas eletrônicas de seus celulares e começam
a improvisar exatamente sobre essa condição que, para o filme, é o atestado de
uma tentativa fracassada. Falam sobre o trabalho, sobre o dia-a-dia desse desvio
de rota em suas expressões artísticas, sobre o próprio surgimento da espontaneidade
e da transformação disso em poesia. É só então que, confrontado com seu projeto
horizontal, L.A.P.A. encontra – talvez tarde demais – aquilo que se esgueirava
o tempo todo pelo filme, pedindo mergulho, pedindo verticalização. Mais que sobre
um bairro ou um movimento, o que há de valioso ali é esse contato com o nascimento
de artistas vigorosos em toda sua ânsia juvenil, e como a natureza do rap é tão
mais reveladora nesse sentido, uma vez que não só assistimos uma expressão se
repetir em cena, mas sim o próprio nascimento dela, da poesia, ali de onde menos
se espera que ela surja. E no choque das espontaneidades, não há imagem fabricada
pelo filme que resista a esse pulso criativo no interior da cena, igualmente fabricado,
mas muito mais disponível a dialogar com tempos, espaços e histórias que se imponham
com força maior que a sua. Abril de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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