Lady
Chatterley (idem), de Pascale Ferran (França,
2006) por Eduardo Valente Nas
mãos (e olhos) de Hands
São as mãos que servem
de porta de entrada para Lady Chatterley descobrir o mundo à sua volta, o mundo
que se esconde para além do singelo portão que, em sua propriedade, parece separar
o domínio da sensatez e da mente (a casa) do domínio da fisicalidade e da paixão
(a floresta). Não por acaso, um de seus primeiros atos após vislumbrar pela primeira
vez o corpo com o torso desnudo do guarda-caças será retirar as luvas – assim
como, bem mais à frente, a cena crucial que representa a passagem da relação entre
os dois para um nível superior é aquela em que, finalmente, ela toca o corpo dele
inteiro, reconhece este mundo com as mãos. Sim,
porque o clássico romance de D.H. Lawrence sempre foi famoso por isso que Pascale
Ferran torna vivo pela linguagem audiovisual: a descoberta do papel central da
dimensão do corpo (menos em oposição do que em complemento à da mente – muito
mais valorizada na Inglaterra dos anos 20) na experiência de um ser humano. Por
isso mesmo, a primeira coisa que Constance faz ao voltar para casa após o primeiro
encontro com Parkin é tirar a roupa e se olhar no espelho: ela parece descobrir-se
ali, naquele momento, possuidora de um corpo. Até por isso mesmo, o filme é sempre
tomado pela natureza, dimensão física e instintiva mais pura. E, não por acaso,
os corpos parecem responder às estações: se recolhem no inverno, desabrocham na
primavera, vivem no auge no verão. É ali, nesta relação com o mundo, que o filme
derrama os sentimentos que seus personagens digladiam-se tanto para conter ou
para conviver com eles, uma vez liberados. No
entanto, para nós espectadores, não será nos corpos e sim nos olhos de Marina
Hands, num desempenho acachapante, que se desenvolve todo o verdadeiro drama de
Lady Chatterley – tanto que o marido dela (tornado impotente por um ferimento
de guerra) se exaspera quando a questiona sobre seus planos de ter um filho, e
ela lhe dá as costas enquanto responde: ele sabe que Constance/Hands conta tudo
com seus olhos, e que só olhando-a ela de frente poderá conhecer a verdade do
que ela diz. Pascale Ferran sabe disso melhor do que ninguém, e parece se perder
constantemente nos olhos de sua atriz principal – especialmente nas cenas de sexo,
que possuem um ritmo absolutamente incomum no cinema, um ritmo essencialmente
feminino. Percebemos a relevância de cada mínimo movimento dos corpos dos dois
amantes pelas mínimas alterações na expressão de Hands: são olhos que anseiam
por cada nova sensação, não sem medo, nem sem a deliciosa curiosidade infantil
de quem descobre partes de seu corpo que nunca soube existir. Não
é só pelo que vemos nos olhos de Constance, porém, que a entendemos, mas também
em como o filme mostra aquilo que ela vê: Ferran filma o corpo masculino com uma
atenção absolutamente distinta, com uma sensibilidade que o torna o principal
foco do desejo no filme (uma raridade em qualquer filme que tenha cenas de nu
total feminino). Ela conta também para isso com uma escalação absolutamente perfeita
do pouquíssimo conhecido Jean-Louis Coullo’ch no papel de Parkin: dono de um physique
du rôle preciso para o personagem, ele tem ainda um olhar introspectivo, algo
envergonhado, que o torna duplamente complexo como o “homem com alma feminina”,
como o personagem é descrito. Em cada uma das cenas dos encontros entre os dois
personagens existe um balé fortíssimo de constante inversão e readequação dos
papéis masculinos e femininos na dinâmica dos espaços. Se
o entrecho principal de Lady Chatterley (a entrega da mulher ao guarda-caças,
que representa tudo de oposto ao mundo em que ela costuma circular) pode soar
hoje quase banal, vale lembrar que, escrito em 1928, o livro só foi liberado para
publicação, tanto na Inglaterra quanto nos EUA, na década de 60. A informação
nos ajuda a entender um pouco melhor porque, para as personagens, este drama da
descoberta dos seus corpos e de sua sexualidade não tem nada de banal. E a beleza
do filme de Pascale Ferran é que, sem subestimar o espectador contemporâneo, ela
filma ao lado das sensações das suas personagens, e da vivência delas. Setembro
de 2007
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