in loco - cobertura do É Tudo Verdade
La Danse, o Balé da Ópera de Paris (La Danse – Le
Ballet de l'Opéra de Paris), de Frederick Wiseman (EUA/França, 2009)
por Filipe Furtado
Profundidade
de palcoLa
Danse é o 38o. filme de Frederick Wiseman em pouco mais de 40 anos
de carreira, toda ela dedicada com afinco ao mesmo processo. Isso poderia (deveria?)
tornar o processo de escrever sobre ele igualmente repetitivo e metódico, afinal
os documentários de Wiseman pouco apresentam de variações dentro do seu formato
(La Danse sequer é o primeiro filme dele sobre uma companhia de balé),
e tudo já foi dito sobre seu método. Só que a imersão na Companhia de Balé de
Paris é tão grande que nada disso de fato importa. Pelo contrário: só reforça
a precisão e rigor com que o veterano documentarista constrói o seu filme. E é
isto que freqüentemente acaba em segundo plano quando se trata do "método
Wiseman", o olhar preciso não tanto para a instituição da vez, mas para a
costura do seu filme. La Danse parte da observação
de dois elementos distintos: de um lado, os movimentos burocráticos e questões
administrativo-financeiras da manutenção da companhia, centrados sobretudo na
diretora Brigitte Lefrave – única personagem do filme a emergir como mais que
um corpo –; do outro, o trabalho dos dançarinos, com ênfase nos ensaios e grande
atenção para o diálogo com os coreógrafos enquanto o trabalho ganha forma. O eixo
arte/comércio está ali ,evidente, e Wiseman jamais o nega, mas o filme está muito
menos nele do que no processo. É no palco que La Danse existe, e as reuniões
da diretora Lafrave só existem para dar a este palco uma profundidade maior. Wiseman
filma o trabalho dos dançarinos em takes longos – com o ocasional corte muito
bem posicionado. Mas, para além do simples observar, faz escolhas cuidadosas de
encenação para potencializar a ação. É interessante comparar La Danse com
outro documentário recente centrado em ensaios de dança: em Eldorado, Olivier
Assayas parte de observar o trabalho do coreógrafo Angelin Preljocaj para criar
um espetáculo "inovador" a partir de uma composição obscura de Stockhausen.
Ambos os filmes se concentram em ensaios, filmados de forma a reduzir a intromissão
do cineasta. Só que eles não poderiam ter resultados mais distintos: enquanto
os exercícios dos dançarinos de Assayas vêm carregados de todo um peso simbólico
e gritam para significar a modernidade que tanto encanta o diretor, os ensaios
e encenações de La Danse valem por si mesmo. Não
à toa, enquanto o filme de Assayas coloca todo um peso nas grifes do seu coreógrafo
e compositor, o balé de La Danse pode ser saboreado mesmo pelo espectador
que pouco conhece do meio e é incapaz de identificar as sete peças ensaiadas ou
os nomes dos coreógrafos reconhecidos que ocasionalmente dão as caras. O que fascina
em La Danse está exclusivamente no salão e mais tarde no palco. É questão
de movimento, acerto e erro, um processo de criação. Se existe algum valor para
além da obra que aqueles dançarinos e coreógrafos desenvolvem diante nos olhos
é só o de reconhecer que este processo tem pontos de contato com outras formas
de criação. Há toda uma mise-en-scène desenvolvida por Wiseman, onde nenhum
plano deixa de ser pensado com cuidado e, assim como acontece com Eduardo Coutinho,
a ênfase crítica no método por vezes nos faz ignorar o tamanho do seu rigor. A
questão essencial de La Danse é como expandir este processo, como chegar
até ele. A
coreografia não deixa de ser um elemento estranho ao "método Wiseman":
se desde High School o cineasta trabalha sobre idéia de revelar a partir
do que seus personagens resolvem mostrar para as câmeras, uns bons dois terços
de La Danse mostram personagens envolvidos numa performance que existe
independente da câmera de Wiseman. Esta relação delicada tira La Danse
da sua zona de conforto, obriga Wiseman a ser ainda mais atento que o habitual
com o seu próprio processo de criação. O que se reflete principalmente na montagem,
tanto na forma como Wiseman sugere que aquele espaço contém muitos filmes – os
158 minutos incluem varias digressões que funcionam como verdadeiros rascunhos
de outros filmes – como nos cortes para os mais aparentemente banais planos de
respiro (seja uma externa da cidade, seja de um corredor vazio). Com cuidado,
Wiseman não só nos insere neste espaço, no meio de mais uma instituição, não só
nos faz observar todas as engrenagens que a mantém em funcionamento – do alto
ao baixo escalão –, não só nos permite apreciar um casal na sua coreografia, como
estabelece como este palco é muito mais amplo do que aparenta ser. E este processo
é muito mais que só observação. Abril de 2010
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