in loco - cobertura dos festivais
Katalin Varga (idem), de Peter Strickland (Romênia/Inglaterra/Hungria,
2009) por Fábio Andrade Fogueira
das vaidades
Katalin Varga tem, a princípio,
todos os elementos para se tornar apenas mais um drama social romeno. Estão lá
as paisagens em sua plena frieza verdejante; a predominância dos cinzas nos interiores;
as consequências trágicas de um ato de violência contra uma mulher em uma sociedade
de recorte claramente machista. Aos poucos, sua fruição se distancia de seus pares
geográficos, e acaba estabelecendo relações com Anticristo, de Lars von
Trier. Aqui também, um trauma sexual feminino ocupa o centro da narrativa (um
estupro), a floresta se torna espaço para a alegoria e o cinema de horror é revisitado
com um olhar externo, que pensa as convenções do gênero em um processo assumido
de terceirização que as desloca de seu ambiente criador. Existe,
porém, uma diferença essencial que é da exata medida da distância entre os dois
filmes: enquanto Lars von Trier se projetava vaidosamente em intervenções escancaradas
sobre cada uma das cenas de Anticristo, Peter Strickland usa a câmera –
e somente a câmera – para extrair uma perturbadora sobrenaturalidade dos ambientes
predominantemente naturais de Katalin Varga. Neste filme de estréia, o
diretor toma um caminho mais interessante ao renegar tanto uma estilização excessiva
do espaço, quanto um protocolo exterior às situações que ele filma. O mundo se
apresenta apenas como mundo, mas há um sujeito que se relaciona com ele a partir
de uma percepção construída por suas experiências. Essa relação não se projetará
sobre o espaço (como em Anticristo), mas o espaço não existirá frio, a
despeito dela (como faz, com claras intenções políticas, Corneliu Porumboiu em
Politist, Adjectiv). É a câmera – justamente a instância que existe entre
o espaço e o sujeito – quem olhará para o mundo de maneira deformadora, peculiar
e, aqui, por vezes assustadora. O
filme encontra um equilíbrio quase sempre preciso (pois ainda temos as malditas
reverberações sonoras que, como Lars von Trier, Peter Strickland adota como atalho
torto para a tensão) entre o drama realista e as estilizações do cinema de gênero.
Por meio da manipulação da luz e da maneira como câmera e vetores se movimentam,
uma dança à fogueira logo se torna um culto de adoração ao diabo – como um campo
romeno é filmado para evocar paisagens bíblicas, ou a escolha precisa das lentes
da câmera produzem uma forte sensação de vertigem em um simples passeio de barco.
Katalin Varga apresenta um diretor igualmente interessado em envolver os
espectadores pela dramaturgia (e uma diferença brutal em relação a Anticristo
está na exposição gradual – e nunca glorificada – do trauma de sua personagem-título)
e em descobrir maneiras de traduzir esse sentimento pelas propriedades técnicas
e físicas do cinema (em dado momentos, é possível perceber traços até mesmo de
um Anticipation of the Night, de Stan Brakhage). Embora isso não seja suficiente
para reservar a Peter Strickland um lugar entre os grandes, é uma combinação interessante
o suficiente para manter aceso todo o interesse por seus próximos filmes. Outubro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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