in loco - cobertura do Festival do Rio
Juventude em Marcha (idem),
de Pedro Costa (Portugal/França, 2006)
por Eduardo Valente
Os olhos de Ventura (e Hermila)
Há um traço curioso que une tanto a resposta dos
meus colegas editores Cléber Eduardo
e Felipe Bragança, quanto a do contracampista Luiz
Carlos Oliveira Jr ao filme de Pedro Costa: a mistura entre a
estranheza, o maravilhamento, e a impossibilidade de dar conta
do filme em uma primeira visão – sentimentos que só ecoam a minha
primeira experiência com o filme, ainda lá em Cannes, onde
o filme estreou mundialmente, para choque, surpresa e rejeição
de muitos. Se outros já disseram que o importante em cinema não
é ver, e sim rever, este é certamente um filme a que a máxima
se aplica com perfeição. E, por isso mesmo, é muito bom finalmente
poder voltar com mais calma à Juventude em Marcha.
Numa segunda audição, é possível escutar a poesia
da fala cheia de gírias do português caboverdeano dos personagens.
Numa segunda atenção, é possível perceber que o principal no filme
é a questão da passagem de experiência de pais para filhos, mesmo
que os filhos nem sempre sejam os seus, e você só os considere
assim (quem e quantos são os filhos de Ventura? Nem ele sabe...).
Num segundo mergulho é possível perceber os reflexos de Ventura,
como fantasma, como ilusão, como estátua, como busto. Numa segunda
compreensão é possível ver o claro retrato social de uma noção
de comunidade sendo destruída em favor de uma praticidade já caduca
(“há aranhas”). Num segunda visão, é possível finalmente olhar
para os planos - olhar sem a avidez nervosa, entre excitação,
exasperação e o tatear no escuro que o filme nos impõe na primeira
experiência.
E olhar, aqui, é a palavra central. Olhar para
as pessoas e os espaços, como faz Ventura ao longo de Juventude
em Marcha. Olhar e conseguir ver algo naquele escuro dos quartos
e salas, algo que não se pode ver sem esta escuridão (nos novos
apartamentos, brancos, não se poderá ver as mesmas coisas). Olhar
adiante e para trás ao mesmo tempo, como parecem fazer sempre
os olhos de Ventura. Olhos magnéticos que parecem dominar o quadro
toda vez que entram em cena. Olhos que parecem sempre ver aquilo
que mais ninguém vê: será a Clotilde, ou uma outra mulher aquela
que o ataca e foge no começo do filme? Será o passado ou o presente
que temos a nossa frente em cada plano? E, mais importante: faz
diferença?
Quem é Ventura, afinal? “Um homem bom”, como se
define no filme. Ventura não é um ator profissional. Ventura,
simplesmente, é Ventura. Em Cannes, compareceu à coletiva de imprensa
com o diretor e outros dois membros do elenco. Pedro Costa avisou
que talvez ele não falasse, porque não gosta de falar com desconhecidos.
E, assim foi. Ventura ficou sentado naquela mesa. Olhando, olhando,
olhando. O que ele via naquele excesso de luz, flashes e câmeras,
só ele sabe. Mas, fato é que não estava no mesmo lugar que nós
– e certamente não estava lá pelos mesmos motivos. Ventura (assim
como seus colegas de elenco, como a Vanda que tanto assombrava
no filme anterior de Costa, No Quarto da Vanda) é um corpo
selvagem ante o cinema de ficção – um pouco como são selvagens
e indômitas as crianças.
E é este espírito que une ao mesmo tempo infantil
e velho que parece assemelhar Ventura à Hermila, personagem principal
de O Céu de Suely. Lá, como cá, os personagens têm o mesmo
nome que seus atores – procedimentos com motivos e fins distintos,
mas com uma semelhança impressionante na figura destes dois personagens
protagonistas. Hermila, 21 anos, “parece mais”. Ventura, envelhecido,
tem os olhos cansados de quem já viu tudo, mas a imprevisibilidade
em cena de uma criança. Nos dois filmes, tudo orbita em torno
deles, e nada parece existir quando eles não estão em cena. O
filme, o mundo, só nos é dado a ver porque eles estão ali. E os
filmes, de pegadas tão distintas, amam apaixonadamente os seus
personagens – de maneira tão oposta e complementar como podem
amar um português e um cearense.
Ambos os filmes foram vistos, por mim, até
agora duas vezes. Comecei a entender sua grandeza, espero poder
continuar em breve o processo. Como diz a carta de Ventura: “Fica
para a próxima. Fico à espera”.
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